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TRABALHOS PRODUZIDOS POR ALUNOS

Em fase de engorda.

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DIA 1º - TEMA: “A ESCRITA DE JARID ARRAES POR REDEMOINHO EM DIA QUENTE"
Natasha F. F. Rocha

Apesar de sua pouca idade, Jarid Arraes, que publica desde os 20 anos, já tem para a conta cinco obras – dentre elas, coleção de cordéis, livros de poesia e de prosa. Jarid, 28, é cearense, de Cariri, e tem raízes fincadas na tradição cordelista do Nordeste. Foi aí, pelo cordel, que se iniciou sua visibilidade como escritora. Nessa produção, em especial, fez questão de destacar a vida de mulheres memoráveis e negligenciadas pela história. Sua primeira prosa, As lendas de Dandara, resgatou a história de Dandara – quase sempre lembrada ligeiramente como a mulher de Zumbi – em um misto de fatos e lendas. Em 2017, lançou Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis, obra que une dois focos centrais em seu processo de escrita: ser mulher e ser negra.

            Redemoinho em dia quente é um livro de contos publicado em 2019 pela Alfaguara. Nele, Jarid mantém seu tom de cordelista em contos que apresentam toada bastante rítmica, bem como sua conexão viva com o Cariri, suas memórias e sua ancestralidade. Os textos vão desde um desenvolvimento mais referencial da realidade – como a mulher que vende cordéis no centro da cidade –, até o relato da história da beata que se droga por engano e tem um encontro vívido com Padim Cícero. A autora não tem medo de se lançar nas mais diversas propostas que dão conta da vivência das mulheres, do real ao fantástico, do observável e do imaginário, dos quais cito como exemplo, a mulher que resolve ser mototaxista para sobreviver e a que adota, um pouco contra a sua vontade, um gato que está vivo e morto.

            Sua linguagem é prestimosa, e capaz de imprimir a tradição cordelista da qual continua signatária, em seu ritmo e pela movimentação das personagens em torno de suas próprias vivências. Seja relembrando costumes de família, em que o acento de oralidade aumenta, ou falando do amor entre duas iguais e seus dilemas, que estão “em romaria, com pouca fé, mas paixão”. A escrita de Jarid, a propósito, abunda em metáforas sensíveis e imagéticas. Talvez o mais interessante na ficção presente em Redemoinho é o modo como a autora traz à vida as diversas tonalidades do ser mulher nordestina. Entre as tradições, no encontro do antigo e do novo, da grande cidade com o sertão do Cariri, o seu corpo de mulher – preta, gorda e bissexual – é a insígnia que procura alcançar o seu espaço como locutora dessa inadequação constante.

            “Mais iluminada que as outras” é exemplar e mostra, com beleza, ao entrelaçar o passado de escravidão e alforria com a identidade contemporânea deste corpo que, ser quem se é, por vezes, pode doer: “Tenho dois seios, estas duas coxas, duas mãos que me são muito úteis, olhos escuros, estas duas sobrancelhas que preencho com maquiagem comprada por dezenove e noventa e orelhas que não aceitam bijuterias. Este corpo é um corpo faminto, dentado cruel, capaz e violento [...] Este corpo que eu tenho é um repetido desagrado. Caminhar neste corpo, por essas ruas, é um infinito cansaço” (p. 37). Na imagem da mulher que coça sua consciência nos espinhos do mandacaru, encerra-se o exercício doloroso e (re)pensar sua existência. No chão rachado da casa é onde repousa o corpo já cansaço de clamar por justiça histórica, nesse estado, o Ceará, terra “mais iluminada que as outras” por ter libertado os escravizados quatro anos antes do restante do país. Repousa mas não deixa de viver. Não deixa de ver beleza. Não deixa de rememorar. Não deixa o passado morrer. Porque seu corpo, tão bem trabalhado literariamente em Redemoinho em dia quente, é a história a ser contada.

ARRAES, Jarid. Redemoinho em dia quente. Alfaguara: São Paulo, 2019.

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A escrevivência de Conceição Evaristo: reflexões necessárias
Lucas do Prado Freitas (UEL/PPGL - Mestrado)

Conceição Evaristo, quem dispensa apresentações, tendo em vista o seu reconhecimento nacional e internacional, enquanto mulher, negra, escritora e militante da causa negra, no texto intitulado “Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita”, presente no livro Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces, diz o seguinte: “A nossa escrevivência não pode ser lida como história para ‘ninar os da casa-grande’ e sim para acordá-los de seus sonos injustos” (EVARISTO, 2007, p. 16-21).

Para Conceição, a escrita literária – a escrevivência – deve ser capaz de despertar a sociedade leitora para a realidade do negro, fazê-la olhar para as injustiças raciais vividas e praticadas no Brasil. Ela fala em nome das escritoras negras brasileiras, de uma coletividade de descendentes afros. Destaca, por conseguinte, a necessidade da denúncia e da provocação e, nesse sentido, quando menciona “os da casa-grande”, recupera não só um passado de dor e de exploração, mas alude a todos os responsáveis pela negação da história e camuflagem da condição do negro, fazendo referência a todas as pessoas que, de uma forma ou outra, contribuíram e contribuem para a manutenção da hierarquia de raça e para a discriminação.

O termo escrevivência nomeia uma escrita assinalada pela experiência individual e coletiva, capaz de, como colocam Duarte e Lopes em “Conceição Evaristo: literatura e identidade” (2018), “inscrever textualmente a realidade social e cultural dos afro-descendentes”. Uma escrita atravessada por memórias e lembranças de pessoas que, no passado, sofreram com a escravidão e que, após a sua abolição, continuam a sofrer. Trata-se, nesse caso, de uma literatura marcada de maneira profunda por uma condição de vida específica: pela condição de mulher negra. Não é a “escrita do eu”, como explica Evaristo (apud PERES, 2018), tampouco autoficção, enquanto um compromisso do indivíduo para consigo. A escrevivência é mais, envolve a impressão de uma identidade e a ação coletiva.

A palavra, então, é tomada como instrumento de ataque, uma vez que se acredita no seu poder e capacidade de evidenciar e derribar o preconceito e de modificar o olhar sobre o negro. Para isso, é necessário que ela não referencie meros estereótipos e lugares-comuns, mas vivências reais de vida. O livro passa a ser recurso bélico, utilizado para romper os grilhões que mantém o negro na subalternidade e para afirmar a sua identidade perante a sociedade. Assim sendo, a escrevivência é também ato libertação e de liberdade, posto que, enquanto lugares de possibilidade, a criação e a leitura propiciam a transposição de limites.

Tais considerações suscitam questionamentos sobre as potencialidades e os efeitos políticos dessa escrita no mundo atual, vista como “ação transformadora capaz de encontrar maneiras de (re)inventar um mundo possível, numa perspectiva estética, ética e política” (BORGES, 2019). Algo que depende da reformulação da representatividade do negro, o qual, até então, esteve fora de noções de humano e humanismo, destituído delas. E como se dá a recuperação da identidade do negro e a atualização da sua imagem perante uma sociedade ocidental que se pensa universal? Quais suas implicações reais?

Tirando um pouco o foco da escrita literária, vale a ventilação de algumas considerações acerca da relação entre identitarismo e ação política, partindo de um ponto de vista, pode-se dizer, mais energético e incisivo sobre a relevância de uma luta que não exclua outros grupos minoritários e vislumbre um horizonte maior de atuação.

Jones Manoel, negro, militante e professor de história, no texto “Duas teses sobre a questão racial no Brasil” (2019), publicado no blog da editora Boitempo, desenvolve uma reflexão ampla e pertinente sobre racismo, identidade e a luta contra a dominação dos sujeitos e das subjetividades. Para ele, a questão racial não deve ficar restrita à ascensão e visibilidade do negro ou à obtenção de garantias sociais, essa deve ser a tática inicial, uma vez que, por si só, é insuficiente. O horizonte de luta deve ser, na sua concepção, a supressão dos marcadores branco e negro e o fim de todas as formas de opressão.

Na sociedade de classes, a classe dominante toma posse e naturaliza uma ideologia sua, legitimando-a como um dado a-histórico, normal e parte essencial da constituição humana. Dessa forma, a não identidade é tida como tudo que corresponde a padrões socialmente dominantes, tudo que é posto como universal e natural. São padrões historicamente edificados e estabelecidos como modelo de normalidade, ou fixados como parâmetros normativos, de forma que o normal é o homem branco, hétero e católico (MANOEL, 2019), enquanto que o diferente é o inferior, o antinatural e o profano.

Logo, com a naturalização dos interesses e das particularidades da classe dominante como universais, nega-se o outro, o divergente e o que a ele se relaciona. Os indivíduos encontram-se, assim, segundo Jones (2019), impossibilitados de olhar ao seu redor e verificar os determinantes sociais que constituem os sujeitos como tal, como se as pessoas fossem todas iguais e suas identidades fossem blocos estanques e monolíticos. Daí o motivo de surgirem falas como a do ator negro norte-americano Morgan Freeman, segundo o qual, para resolver o racismo, é necessário que se pare de falar nele. Ou mesmo alegações do tipo: “branco e preto são iguais e devem ter direitos iguais”.

Como pode haver igualdade em um sistema fundado na desigualdade? O racismo, enquanto um todo econômico, ideológico, político e social, coloca o homem branco como figura ideal e padrão, revestida de valores positivos. O homem branco é, então, o civilizado, o honesto, o inteligente, o forte, o belo, o empreendedor de sucesso, o político etc. e o negro, por sua vez, o seu contrário. Funda-se, assim, uma categoria sócio-histórica dominante, imposta e diariamente reforçada por meio de práticas sociais e aparelhos ideológicos surgidos na produção e reprodução da vida.

Conceição Evaristo, como já visto, entende que, para a reversão (ou atualização?) dessa condição, deve-se combater as imposições identitárias do homem branco. Quer dizer, por intermédio da palavra, deve-se mostrar que o negro possui uma identidade marcadamente sua e não aquela que tentam lhe impor. Trata-se, de acordo com Jones (2019), da busca de positivação do negro, enquanto uma forma de negar a ideologia dominante, racista e patriarcalista e afirmar, em uma inversão completa de sentidos, que o negro tem história, religião, beleza e inteligência – que ele é ser humano e sujeito. Nessa literatura, na abordagem dos “dilemas identitários do afro-descente”, a escrita se desenvolve no interesse de afirmação e resistência à espoliação (DUARTE; LOPES, 2018).

A positivação do negro e a defesa da sua identidade, enquanto uma maneira de gerar mudanças na forma como o negro é percebido, conforme defende Conceição Evaristo, são extremamente importantes, mas, como mostra Jones Manoel, não devem ser o fim máximo da luta contra o preconceito. Seu resultado é insuficiente e parcial, posto que pode produzir a falsa impressão de que a questão racial pode, em uma democracia majoritariamente dirigida por homens brancos, ser assim resolvida. Não se trata de defender a substituição do identitarismo branco por um identitarismo negro, mas o fim das imposições identitárias, sendo imprescindível que se tome cuidado para não conduzir o negro ao ódio a tudo que se relaciona ao branco.

Concluindo, conforme diz Jones Manoel (2019), é necessário dizer que se é negro para que, um dia, seja possível afirmar que se é humano. Ou seja, como Conceição Evaristo, deve-se valorizar a identidade negra e denunciar as suas misérias pela escrevivência, contudo, não se pode ignorar outras formas de opressão ou outras militâncias, excluindo-as da participação em uma luta maior, cujos resultados poderão ser mais agudos e profundos.

Referências:

 

BORGES, Rosane. Uma intervenção radical sobre as formas tradicionais de observar negritude e branquitude procura subverter o olhar branco hegemônico e suas objetificações. 2019. Disponível em:<https://www.geledes.org.br/para-ir-muito-alem-da-critica-ao-identitarismo/>. Acesso em: 07 dez. 2019.

 

EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. In: ALEXANDRE, Marcos Antônio. (Org.). Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007. p. 16-21.

 

DUARTE, Eduardo de Assis; LOPES, Elisângela. Conceição Evaristo: literatura e identidade. 2018. Disponível em:<http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/29-critica-de-autores-feminios/199-conceicao-evaristo-literatura-e-identidade-critica>. Acesso em: 07 dez. 2019.

 

MANOEL, Jones. Duas teses sobre a questão racial no Brasil. 2019. Disponível em:< https://blogdaboitempo.com.br/2019/11/28/duas-teses-sobre-a-questao-racial-no-brasil/>. Acesso em: 07 dez. 2019.

 

PERES, Ana Cláudia. Mulher negra, brasileira e escritora. 2018. Disponível em:< ://radis.ensp.fiocruz.br/index.php/home/reportagem/mulher-negra-brasileira-e-escritora>. Acesso em: 07 dez. 2019.

 

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ESCREVER PARA LEMBRAR: “HEROÍNAS NEGRAS BRASILEIRAS EM 15 CORDÉIS” DE JARID ARRAES
Camila Nakamura Vieira

 

ARRAES, Jarid. Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis. São Paulo: Pólen,
2017.
Em Lembrar, escrever, esquecer (2006), Jeanne Marie Gagnebin
disserta sobre o poder duplo que a escrita possui de petrificar o presente, e
simultaneamente, de lutar contra o esquecimento. É sob viés parecido que se
firma Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis (2017) da cearense Jarid
Arraes.
Por meio de 15 cordéis, Arraes traz à tona 15 mulheres negras
esquecidas pela história. É interessante que a escritora tenha escolhido o
gênero cordel para transmitir a trajetória e o legado de diversas mulheres, que,
cada uma a seu modo, foram excepcionalmente significativas no curso
histórico, já que o cordel através da coloquialidade, busca comunicar a tradição
das histórias orais.
Carregada de rimas e de uma linguagem muito acessível e tipicamente
brasileira, Arraes dá luz à história de luta dessas mulheres, e firma a
importância de ilustrá-las. “Antes de chegar à idade adulta, nunca tinha ouvido
falar de uma mulher negra que tivesse feito algo de importante na História.”,
comenta Jarid na contracapa da obra. A representatividade no livro é vasta.
Representantes políticas, símbolos de resistência, escritoras. Entre alguns dos
nomes das homenageadas estão Carolina Maria de Jesus, Dandara,
Aqualtune, Maria Firmina dos Reis, Tereza de Benguela, Laudelina de
Campos.
Trazer à tona a história dessas heroínas negras é remeter ao passado,
simultaneamente intervir no presente, e consequentemente no futuro.
Gagnebin, alinhando-se a esse pensamento, afirma que
Nesse sentido, uma ampliação do conceito de testemunha se
torna necessária; testemunha não seria somente aquele que
viu com seus próprios olhos, o bistor de Heródoto, a
testemunha direta. Testemunha também seria aquele que não
vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do
outro e que aceita que suas palavras levem adiante, como num
revezamento, a história do outro: não por culpabilidade ou por
compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica,
assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente
essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não
repeti-lo infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história,
a inventar o presente. (GAGNEBIN, 2006, p.57)
Jarid Arraes, escritora negra, cearense, dona de quatro obras publicadas
– Heroínas negras brasileiras em 15 córdeis (2017), As Lendas Dandara
(2016), Um buraco com meu nome (2018), e Redemoinho em dia quente
(2019) – é testemunha e protagonista do que escolheu transmitir em seus
cordéis. A transmissão das histórias selecionadas por Jarid não se encerra na
edição do livro, e oferece a oportunidade, nas últimas páginas em branco, de
que o leitor possa inserir um cordel próprio, que conte a história de uma
heroína negra. Ao final da obra, o leitor é direcionado a enviar o cordel para o
e-mail de contato de Arraes, a fim de que possa ser selecionado e adicionado a
esse projeto de reconstrução histórica. Dessa forma, o ciclo não finda, e a
história dessas inúmeras mulheres continua a caminhar.
ARRAES, Jarid. Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis. São Paulo:
Pólen, 2017.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Ed.34,
2006.