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LEITURAS DE LEITURAS

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UM QUILOMBO LITERÁRIO:

MESMAS VOZES, OUTROS TONS

RESUMO

Este trabalho parte de pressupostos únicos refletidos no discurso da mulher na literatura, limitando-os ao discurso da mulher negra acadêmica. A relevância do estudo se deve aos inúmeros debates teóricos quanto à possibilidade da mulher, enquanto escritora, transparecer em seu discurso literário traços distintos que revelam sua natureza. Levando adiante essa premissa, busca-se averiguar como a mulher negra expressa seu discurso abrangendo não apenas a natureza peculiar feminina como sua vivência carregada de estigmas relativos à sua raça. Para tal, analisam-se duas escritoras contemporâneas, Conceição Evaristo e Miriam Alves, as quais mostram marcas do conflito enfrentado na busca de uma independência acadêmica, literária, demonstrada claramente no seu discurso, provando, a princípio, a hipótese da impossibilidade de separação entre vivência e discurso da escritora negra acadêmica. O procedimento metodológico consiste em leitura, discussão e análise de obras das referidas autoras proeminentes a partir de teorias dos estudos culturais e de críticos literários que se debruçaram sobre o tema.

Palavras-chave: Discurso; Literatura Afro-Brasileira; Escritora Negra.

ABSTRACT

This study focused on unique assumptions reflected in the speech of women in literature, limiting them to the discourse of academic black woman. The relevance of the study due to theoretical debates about the possibility of the woman, as a writer, shine through in his speech distinct traits that reveal their literary nature. Taking forward this premise, we seek to find out how the black woman expresses her speech covering not just the peculiar feminine nature as your experience loaded with stigmas concerning his race. To this end, it examines two contemporary writers, Conceição Evaristo and Miriam Alves, which show marks of conflict faced in the search for a literary academic independence, demonstrated clearly in his speech, proving, at first, the impossibility of separating living and discourse of black academic writer. The methodological procedure consists of reading, discussion and analysis of works of such prominent authors from theories of cultural studies and literary critics who pored over the theme.

Keywords: Speech; Afro-Brazilian Literature; Black Writer.

INTRODUÇÃO

Levando-se em consideração a noção de signo linguístico, elaborado por Saussure, observa-se a necessidade analítica de uma nova concepção literária da mulher acadêmica afro-brasileira. Justificado pelo fato de o signo linguístico no discurso literário não se constituir apenas uma união entre um termo e uma ideia, mas ponto de partida para um sistema de significação e de valores eclodidos por fixação de ideias e/ou experiências da escritora.

Os estigmas e estereótipos, envolvendo gênero e raça, são discutidos na atualidade sob a égide de construções sociológicas, evoluídas por forças de trabalho e necessidades de preenchimento das lacunas culturais e sociais.

A mulher, independente da raça, apenas obteve espaço social e liberdade de expressão há menos de um século, graças a uma árdua luta contra o patriarcalismo reinante. Mesmo assim é possível encontrar inúmeras arestas não aparadas

igualitariamente visando a equidade nos gêneros.

A raça negra, por sua vez, ainda se encontra na busca de seu espaço e de seu valor enquanto ser humano. A mulher negra ainda se encontra subjugada a pré-conceitos transferidos pela história oral e discurso literário brasileiros.

Nessa mescla de sentimentos e experiências vivenciadas é construído o discurso literário da mulher acadêmica afro-brasileira, emergindo conteúdos de peculiaridades únicas, coloridas pelo sofrimento, pela busca de reconhecimento e valor na sociedade democrática – sem raça, sem cor, sem credo, sem classes e sem preconceitos.

A partir dessas premissas e enfocando duas escritoras negras contemporâneas, Conceição Evaristo e Miriam Alves, das quais emergem em seus discursos, peculiaridades demarcadas pelo conflito enfrentado na busca de uma independência acadêmica, literária, provando, a princípio, a hipótese da impossibilidade de separação entre vivência e discurso da escritora negra acadêmica. Para tal, é utilizado como procedimento metodológico a leitura, a discussão e a análise de obras das referidas autoras proeminentes a partir de teorias dos estudos culturais e de críticos literários que se debruçaram sobre o tema.

NATUREZA ESSENCIAL DA LITERATURA AFRO-BRASILEIRA

Os elementos que diferenciam a literatura afro-brasileira das letras nacionais, no ver de Duarte (2008, p. 12-13), são:

  1. “Negro é o tema principal da literatura negra”: o escritor afrodescendente não se vê apenas no plano individual, mas, abrangendo um universo humano, cultural, social e artístico do qual essa literatura se nutre.
  2. “Autoria”: a escrita proveniente de um afrodescendente automaticamente envolverá a expressão de individualidades fraturadas pelo processo miscigenador.
  3. “Ponto de Vista”: este elemento complementa o anterior, face a necessidade de perspectivas, uma visão de mundo atrelada à história e à cultura que permeiam a problemática vivenciada pelo segmento afro-brasileiro.

“Linguagem”: existe um discurso específico demarcado por expressividade de ritmos e significados novos, bem como, um vocabulário distinto oriundo das práticas linguísticas africanas, as quais foram inseridas

  1. transculturalmente no Brasil.
  2. “Formação de um público leitor afro-descendente”: este fator é intencional, ou seja, a produção literária é voltada para um público específico – o afrodescendente.

Enfatiza-se que os elementos acima citados  devem ser considerados de forma conjunta para a representação da literatura afro-brasileira.

Alguns críticos enfatizam o risco dos critérios étnico e temático atuarem como “censura prévia”, outros defendem um critério pluralista por meio de uma orientação dialética onde considere a literatura afro-brasileira como uma das faces da literatura brasileira, e por fim, alguns consideram a literatura brasileira como  uma “tradição fraturada” em virtude da influência de vários países no processo de colonização. O importante, reiterado por Duarte (2008), é que o discurso literário afro-descendente emerge de uma expressão múltipla apresentando inúmeras matizes.

A produção literária dos escritores afrodescendentes brasileiros é encarada por Souza e Lima (2006, p. 9) como sendo um “circuito editorial alternativo”, face retratar a historicidade envolvendo os quilombos como “símbolo de resistência e preservação cultural”, igualmente apresenta as dificuldades do cotidiano onde os escritores assumem uma função social da literatura, tal como suscita o poema de Esmeralda Ribeiro:

“Trocar de máscara”
Talvez temendo entrar na arena dos leões
eu esconda a coragem nos retalhos
coloridos da vida.
A pálida lua traz o sabor das provações
transformando o olho em ostra
Cismo: a pele em roupa não tem mais razões,
para ser trocada e assim
me recolho e me cubro com a mortalha
De anulações. (SOUZA e LIMA, 2006, p. 23).

Um detalhe importante é o processo de “branqueamento” do afrodescendente brasileiro, segundo Souza e Lima (2006), oriundo do estímulo da integração social dos descendentes de escravos. A miscigenação do negro africano com o branco europeu, nas fases colonial e posteriores, geraram um Brasil com elevada representatividade de “morenos” ou “mestiços” eclodindo mais um entrave para a expressividade da “literatura negra”, pois muitos escritores, mesmo sendo afrodescendentes, acreditam “que a produção artística não precisa estar atrelada ao pertencimento étnico-racial”. (p. 35)

Outro problema evidenciado quanto a construção do discurso literário afro-brasileiro é o próprio confinamento acadêmico, onde para muitos estudantes negros se apresenta como um campo minado, tal como indica o depoimento de um aluno de doutorado de Sociologia em sua banca de qualificação do projeto inicial, sofrendo questionamento quanto ao seu pertencimento ao “Movimento Negro”, efetuado por um professor que critica o sistema de cotas nas universidades:

Ele percebeu claramente que se desse uma resposta afirmativa seria inevitavelmente reprovado. Mentiu, então, afirmando que havia sido militante no passado, mas que agora havia decidido dedicar-se “de fato” à carreira acadêmica. A resposta agradou ao examinador, que finalmente concordou em aprová-lo. Termina agora seu doutorado e obviamente evitará ser examinado por esse professor, conhecido em seu departamento por pregar agressivamente contra as cotas para negros em sala de aula. A lição que aprendeu (e que agora pratica) é que o mundo acadêmico brasileiro é um campo minado para pesquisadores negros e não se pode ser ingênuo, franco ou aberto acerca da questão racial nesse nosso meio. (CARVALHO, 2006, p. 93)

Tal fato não só incorre na dificuldade de letramento dos escritores afrodescendentes como no constrangimento daqueles que conseguiram superar essa barreira, tornando-se professores universitários como é exposto no seguinte depoimento:

Um professor negro contou-me recentemente um episódio constrangedor: deu a primeira aula do semestre de uma disciplina da carreira de Medicina de uma universidade particular carioca para uma turma de 68 alunos com apenas dois negros. Quando entrou na sala dois dias depois, ao começar a segunda aula, alguns dos alunos brancos se surpreenderam e lhe disseram abertamente: “O que você faz aqui?”. “Vim dar aula, obviamente”,  respondeu. “Ah, mas nós pensamos que aquela aula era um trote!” Um professor negro em um curso de Medicina só pode ser um trote? (CARVALHO, 2006, p. 93)

Não existem respostas para a pergunta do autor da pesquisa: “Como conseguimos construir no Brasil um espaço acadêmico tão poderoso, numeroso e tão excludente?” (CARVALHO, 2006, p. 93)

As mulheres afrodescendentes igualmente sofrem com o choque do confinamento, conforme é demonstrado nos depoimentos a seguir:

Chegando à universidade, senti um baque grande, porque todas as pessoas eram de classe média, classe média alta, brancos, descendentes de europeus. Na minha turma éramos umas 45 pessoas, e dessas, apenas três negros – duas mulheres e um colega homem. Dentro desse meu susto, fui procurar na universidade formas de me manter lá. Entrei no programa Conexões de Saberes, que tinha foco na permanência na universidade de estudantes de origem popular, em que eram considerados, entre vários quesitos, a questão de raça e gênero. Éramos 25 bolsistas desse programa, todos de origem popular, com concepções bem diferentes de sociedade. O projeto se constituiu num espaço de trocas e debates e, também foi o lugar onde eu consegui me sentir em casa dentro da universidade. (grifo nosso) (WERNECK, 2012, p. 26-27)

Pelo depoimento acima, percebe-se um sentimento de não pertencimento em uma universidade e a necessidade de encontrar um lugar onde se sentisse alguém.

Eram 20 vagas e eu fiquei em 7º lugar. Quando eu saí da FIOCRUZ e vi a minha nota, fiquei bastante chateada e sabia porque eu estava sendo reprovada. Não era pela competência que eu tinha em fazer a prova, a entrevista, o projeto. Nada disso foi analisado, apenas olharam o meu fenótipo que vem carregado de toda a questão racial. (grifo nosso) (WERNECK, 2012, p. 30)

No depoimento acima, a seleção foi efetuada pelo critério fenótipo, ou seja, um racismo velado/proibido, mas comumente aplicado nas grandes empresas e universidades do País.

Estas situações não são privilégios do universo brasileiro, Carvalho (2006) salienta que no mundo o colonialismo português foi o mais “permissivo” deixando o negro assumir sua identidade. Em universidades norte-americanas, nas décadas de 1960-1970, não era permitido abordar as obras de Frantz Fanon – psiquiatra e ensaísta francês da Martinica, de ascendência francesa e africana – em sala de aula sob a pena de perder o emprego. (FANON, 2008)

A teoria de Fanon é que o racismo e o colonialismo deveriam ser compreendidos como formas socialmente geradas de se ver e de se viver no mundo, e no caso, os negros deveriam ser construídos como negros. Mas, essa construção se dá pela linguagem, pois é por meio dela que ocorre o reconhecimento, conforme explica:

Na linguagem está a promessa do reconhecimento; dominar a linguagem, um certo idioma, é assumir a identidade da cultura. Esta promessa não se cumpre, todavia, quando vivenciada pelos negros. Mesmo quando o idioma é “dominado”, resulta a ilegitimidade. Muitos negros acreditam neste fracasso de legitimidade e declaram uma guerra maciça contra a negritude. Este racismo dos negros contra o negro é um exemplo da forma de narcisismo no qual os negros buscam a ilusão dos espelhos que oferecem um reflexo branco. (FANON, 2008, p. 15)

Razão pela qual se faz urgente a valorização da cultura afro-brasileira a fim de que não se perca a sua riqueza ímpar, suas vivencias e experiências que fundamentaram a cultura brasileira, em detrimento da dominação branca.

QUILOMBOS IGUAIS, VISÕES DIFERENTES

A escritora negra paulista Miriam Alves foi precoce na produção de seu discurso literário, iniciando-o com a apenas onze anos de idade, contudo, só foi possível publicar seus textos ao entrar para o grupo Quilombhoje Literatura, no período de 1980 a 1989, seu primeiro livro, Momentos de busca (1983), apresenta o longo trajeto de poemas escritos desde a adolescência. (LITERAFRO, 2013)

Para Zilá Bernd (1992) a poesia de Miriam Aves apresenta duas dimensões de sua identidade, a negra buscada sem anular a dimensão da feminina, decifrando-se mediante a indagação de seu papel na sociedade enquanto negra e mulher. Seu discurso poético direto “convoca à vigília e não ao sono, à fala não o silêncio, à conscientização e não à alienação”, descobrindo a resolução e si própria, pois “Só a escuridão da noite permite que alcancemos as estrelas.” Assim, demonstra de forma libertadora como a mulher é oprimida. (p.90)

MAHIN AMANHÃ
Ouve-se nos cantos a conspiração
vozes baixas sussurram frases precisas
escorre nos becos a lâmina das adagas
Multidão tropeça nas pedras
Revolta
há revoada de pássaros
sussurro, sussurro:
“é amanhã, é amanhã.
Mahin falou, é amanha”
A cidade toda se prepara
Malês
Bantus
geges
nagôs
vestes coloridas resguardam esperanças
aguardam a luta
Arma-se a grande derrubada branca
a luta é tramada na língua dos Orixás
é aminhã, aminhã”
sussuram
Malês
Bantus
geges
nagôs
“é aminhã, Luiza Mahin falô” (LITERAFRO, 2014)

No poema acima é possível observar a exposição nua e crua de sua identidade negra, abrangendo a tradição religiosa e cultural, e principalmente o canto de luta de uma raça que nunca se calou, ao contrário, diariamente, em cada amanhecer é cantado.

MOMENTOS DE BUSCA
O vulto
nítido
refletido
escondido
me toma todas as manhãs
penetrando em mim como verdade
bebendo café preto
comendo pão sem manteiga
lavando o sonolento rosto
higienizando o corpo
com perfumes vulgares

O que procuro?
o que oculto?
- todas as respostas?
perguntas?
- todas as afirmações do não?
todas as negações do sim?

O que oculto
perdido no armário
cotucando lembranças
escarafunchando a vida?

Eu vulto e eu

Eu e meu vulto
inseparadamente

juntos
nos encontramos
bem mais que mãos dadas
clareando a madrugada
com olhos estalados
na insônia
encostados num lençol
cheirando limpeza
de sabão em pó
torcidos na máquina de lavar. (BERND, 1992, p.91-92)

No poema acima, a escritora demonstra a busca de sua identidade, tanto da raça quanto da mulher, a qual somente é possível de encontrar mediante a introspecção de seu cotidiano.

Conceição Evaristo, Doutora em Letras, atua como educadora e consultora em assuntos afro-brasileiros para pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Enquanto escritora atua como poetisa, romancista e ensaísta. (RAÇA BRASIL, 2013)

A função do discurso literário afro-brasileiro, segundo Conceição Evaristo, é um instrumento que “revela a face de um povo, de nós brasileiros, face tal qual nós acreditamos que ela é, e não pela maneira como o branco sempre nos revelou.”  Deixando claro em seu poema “Vozes – Mulheres”, o percurso temporal tomado pelas vozes femininas e que ainda ecoam como promessas de esperança de liberdade. (TERRA ROXA, 2013)

“Vozes-Mulheres” de Conceição Evaristo (1990, p. 32)
A voz da minha bisavó ecoou
criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
 ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem — o hoje — o agora.
Na voz de minha filha
Se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.

No discurso de Conceição Evaristo é possível observar de forma contundente o quanto oprimida foi a voz da mulher e do negro, colocando em pauta a busca de afirmação identitária mediante a representação de sua própria visão experiencial e vivencial, enquanto negra dentro de sua diáspora africana em um mundo de homens e de brancos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A construção de identidades por meio de vivências e saberes se tornam subjetivas quando evocam a individualidade carregada de peculiaridades, originárias da raça, do gênero, da cultura, da educação, entre outros, os quais são impossíveis de controlar e/ou mensurar sem que alguém seja a “voz” propagadora.

Ambas as escritoras, Miriam e Conceição, apresentam em seu discurso literário a exposição de uma mesma opressão/repressão, tanto em virtude de sua raça quanto de seu gênero, marcando e denunciando o que uma minoria detentora do poder segregadora e preconceituosa pode gerar na vida de seus alvos, no presente caso representado pela mulher e pelo afro-brasileiro pela desconstrução identitária.

O resultado dessa opressão é apresentado por Miriam Alves e Conceição Evaristo pela necessidade de uma identidade própria, a primeira de forma mais amena, a segunda de forma rígida, sem utilização de meios termos ou de abrandamento de uma realidade. Nesse ponto, Conceição Evaristo, expõe a realidade em sua forma ‘nua e crua’, não importando a quem doa, pois o compromisso é apenas com a verdade...e a verdade nem sempre é agradável a todos.

REFERÊNCIAS

BERND, Zilá. Poesia negra brasileira: antologia. Porto Alegre, 1992.

CARVALHO, José Jorge. O confinamento racial no mundo acadêmico. Revista USP, São Paulo, n. 68, p. 88-103, dezembro/fevereiro 2005-2006.

DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura afro-brasileira: um conceito em construção. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, nº. 31. Brasília, janeiro-junho de 2008, pp. 11-23.

Fanon, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

LITERAFRO. Miriam Alves. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/data1/autores/107/dados1.pdf. Acesso em: 21 out. 2013.

LITERAFRO. Miriam Alves. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/data1/autores/107/textosselecionados.pdf. Acesso em: 21 fev. 2014.

RAÇA BRASIL. Entrevista Conceição Evaristo. Disponível em: http://racabrasil.uol.com.br/cultura-gente/96/artigo15673-3.asp. Acesso em: 30 out. 2013.

SOUZA, Florentina; LIMA, Maria Nazaré (orgs). Literatura afro-brasileira. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006.

TERRA ROXA. Revista de Estudos Literários. Volume 17-A, dez. 2009. Disponível em: http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa [123-134]. Acesso em: 30 out. 2013.

Werneck, Jurema; IRACI, Nilza; CRUZ, Simone Cruz.(orgs) Mulheres negras na primeira pessoa. Porto Alegre: Redes Editora, 2012.

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O DISCURSO DA MULHER NEGRA ACADÊMICA

NA LITERATURA AFRO-BRASILEIRA

RESUMO

O objetivo desta comunicação é refletir sobre as vozes de autoras afrodescendentes intelectuais, a partir da segunda metade do século XX. É na perspectiva de compreendermos o processo de transposição desta consciência crítica para o leitor até então encabulado, pretendemos analisar a memória do eu conflitante dessas mulheres negras, no discurso agora desinterrompido por uma formação acadêmica conquistada e as marcas coincidentes (ou não) dessa linguagem ainda não tão livre, no contexto social brasileiro. O procedimento metodológico consiste em leitura, discussão e análise de obras de autoras afro-brasileiras proeminentes a partir de teorias dos estudos culturais e de críticos literários que se debruçaram sobre o tema. A pesquisa em questão ressalta ainda a importância da geração de uma identidade literária brasileira, que envolva os afrodescendentes, saindo de padrões coloniais europeus que nada definem ou valorizam o cidadão brasileiro, o qual invariavelmente possui ascendência africana em algum momento de sua genealogia. E, a partir da ótica vivenciada e exposta na literatura por essas estudiosas, é possível vislumbrar as raízes do preconceito e as alternativas para extinguir os estereótipos construídos ao longo da história da literatura brasileira. E, de forma conclusiva, sugerimos a existência de um desconhecimento de uma maioria da sociedade no que se passa no cotidiano da mulher negra intelectual, durante o percurso de ascensão acadêmica e profissional, principalmente, no que se refere aos estigmas incorporados por um relato oral apresentado de forma, muitas vezes, preconceituoso.

Palavras-chave: Mulher negra intelectual; Literatura afro-brasileira; Discurso.

ABSTRACT

The purpose of this communication is to reflect on the voices of Afro descendant authors, intellectuals from the second half of the 20th century. It is from the perspective of understanding the process of transposing this critical conscience to the reader until then embarrassed, we intend to analyze the memory of I such black women, conflicting in the speech now non-interrupted by a conquered education and matching tags (or not) this language still not so free, the Brazilian social context. The methodological procedure consists of reading, discussion and analysis of works of authors prominent Afro from theories of cultural studies and literary critics who pored over the theme. The research in question underscores the importance of the generation of a Brazilian literary identity, involving afro descendants, leaving European colonial patterns that define or appreciate the Brazilian citizen, which invariably has African ancestry in some point of his genealogy. And, from the experienced optical and exposed in the literature for these scholars, it is possible to glimpse the roots of prejudice and the alternatives to extinguish stereotypes constructed throughout the history of Brazilian literature. And, conclusively, we suggest the existence of a lack of a majority in society that goes on in the daily life of the intellectual black woman, during the journey of academic and professional rise, mainly as regards stigmata incorporated by an oral report presented so often biased.

Keywords: intellectual black woman; Afro-Brazilian literature; Speech.

INTRODUÇÃO

Levando-se em consideração a noção de signo linguístico, elaborado por Saussure, observa-se a necessidade analítica de uma nova concepção literária da mulher acadêmica afro-brasileira. Justificado pelo fato de o signo linguístico no discurso literário não se constituir apenas uma união entre um termo e uma ideia, mas ponto de partida para um sistema de significação e de valores eclodidos por fixação de ideias e/ou experiências da escritora.

Os estigmas e estereótipos, envolvendo gênero e raça, são discutidos na atualidade sob a égide de construções sociológicas, evoluídas por forças de trabalho e necessidades de preenchimento das lacunas culturais e sociais.

A mulher, independente da raça, apenas obteve espaço social e liberdade de expressão há menos de um século, graças a uma árdua luta contra o patriarcalismo reinante. Mesmo assim é possível encontrar inúmeras arestas não aparadas igualitariamente visando a equidade nos gêneros.

A raça negra, por sua vez, ainda se encontra na busca de seu espaço e de seu valor enquanto ser humano. A mulher negra ainda se encontra subjugada a pré-conceitos transferidos pela história oral e discurso literário brasileiros.

Nessa mescla de sentimentos e experiências vivenciadas é construído o discurso literário da mulher acadêmica afro-brasileira, emergindo conteúdos de peculiaridades únicas, coloridas pelo sofrimento, pela busca de reconhecimento e valor na sociedade democrática – sem raça, sem cor, sem credo, sem classes e sem preconceitos.

A partir dessas premissas pretende-se discutir acerca de aspectos étnicos-identitários na literatura de mulheres acadêmicas afrodescendentes, possuindo como eixo central da pesquisa a necessidade de estudo crítico sobre a produção de autoras negras que se consolidou nas últimas décadas do século XX e se mantém intensa até o momento. Essa figuração literária assumiu proporções culturais tais que a escritora acadêmica afro-brasileira incorporou em seu discurso:

Lá vou eu, sem mais aquela, cabelo pixaim e bela.
Uma bunda grande sem qualquer trela que cubra ela.
Bela sei que sou e vou bela.
[...] E lá vou eu de novo, em busca de um lugar onde eu possa ser bela.
Cabelo pixaim, bela, bunda grande sem qualquer trela que cubra ela, bela. (grifo nosso) (CONCEIÇÃO, 1983, p. 55)

No excerto acima é claramente demonstrada a conotação lasciva e erótica demarcada pela constituição orgânica dos afrodescendentes, bem como, a necessidade premente da autora em se autoafirmar dentro de uma sociedade estigmatizadora.

Tendo ainda como relevância o estudo face a ignorância da população frente ao preconceito vivido pelos afrodescendentes, sendo necessária a divulgação do valor da literatura afro-brasileira a fim de extinguir os padrões estereotipados oriundos da minoria dominante.

 

NATUREZA ESSENCIAL DA LITERATURA AFRO-BRASILEIRA

Os elementos que diferenciam a literatura afro-brasileira das letras nacionais, no ver de Duarte (2008, p. 12-13), são:

  1. “Negro é o tema principal da literatura negra”: o escritor afrodescendente não se vê apenas no plano individual, mas, abrangendo um universo humano, cultural, social e artístico do qual essa literatura se nutre.
  2. “Autoria”: a escrita proveniente de um afrodescendente automaticamente envolverá a expressão de individualidades fraturadas pelo processo miscigenador.
  3. “Ponto de Vista”: este elemento complementa o anterior, face a necessidade de perspectivas, uma visão de mundo atrelada à história e à cultura que permeiam a problemática vivenciada pelo segmento afro-brasileiro.
  4. “Linguagem”: existe um discurso específico demarcado por expressividade de ritmos e significados novos, bem como, um vocabulário distinto oriundo das práticas linguísticas africanas, as quais foram inseridas transculturalmente no Brasil.
  5. “Formação de um público leitor afro-descendente”: este fator é intencional, ou seja, a produção literária é voltada para um público específico – o afrodescendente.

Enfatiza-se que os elementos acima citados devem ser considerados de forma conjunta para a representação da literatura afro-brasileira.

Alguns críticos enfatizam o risco dos critérios, étnico e temático, atuarem como “censura prévia”, outros defendem um critério pluralista por meio de uma orientação dialética onde considere a literatura afro-brasileira como uma das faces da literatura brasileira, e por fim, alguns consideram a literatura brasileira como uma “tradição fraturada” em virtude da influência de vários países no processo de colonização. O importante, reiterado por Duarte (2008), é que o discurso literário afro-descendente emerge de uma expressão múltipla apresentando inúmeras matizes.

A produção literária dos escritores afrodescendentes brasileiros é encarada por Souza e Lima (2006, p. 9) como sendo um “circuito editorial alternativo”, face retratar a historicidade envolvendo os quilombos como “símbolo de resistência e preservação cultural”, igualmente apresenta as dificuldades do cotidiano onde os escritores assumem uma função social da literatura, tal como suscita o poema de Esmeralda Ribeiro: 

“Trocar de máscara”
Talvez temendo entrar na arena dos leões
eu esconda a coragem nos retalhos
coloridos da vida.
A pálida lua traz o sabor das provações
transformando o olho em ostra
Cismo: a pele em roupa não tem mais razões,
para ser trocada e assim
me recolho e me cubro com a mortalha
De anulações. (SOUZA e LIMA, 2006, p. 23).

Um detalhe importante é o processo de “branqueamento” do afrodescendente brasileiro, segundo Souza e Lima (2006), oriundo do estímulo da integração social dos descendentes de escravos. A miscigenação do negro africano com o branco europeu, nas fases colonial e posteriores, geraram um Brasil com elevada representatividade de “morenos” ou “mestiços” eclodindo mais um entrave para a expressividade da “literatura negra”, pois muitos escritores, mesmo sendo afrodescendentes, acreditam “que a produção artística não precisa estar atrelada ao pertencimento étnico-racial”. (p. 35)

Outro problema evidenciado quanto a construção do discurso literário afro-brasileiro é o próprio confinamento acadêmico, onde para muitos estudantes negros se apresenta como um campo minado, tal como indica o depoimento de um aluno de doutorado de Sociologia em sua banca de qualificação do projeto inicial, sofrendo questionamento quanto ao seu pertencimento ao “Movimento Negro”, efetuado por um professor que critica o sistema de cotas nas universidades:

Ele percebeu claramente que se desse uma resposta afirmativa seria inevitavelmente reprovado. Mentiu, então, afirmando que havia sido militante no passado, mas que agora havia decidido dedicar-se “de fato” à carreira acadêmica. A resposta agradou ao examinador, que finalmente concordou em aprová-lo. Termina agora seu doutorado e obviamente evitará ser examinado por esse professor, conhecido em seu departamento por pregar agressivamente contra as cotas para negros em sala de aula. A lição que aprendeu (e que agora pratica) é que o mundo acadêmico brasileiro é um campo minado para pesquisadores negros e não se pode ser ingênuo, franco ou aberto acerca da questão racial nesse nosso meio. (CARVALHO, 2006, p. 93)

Tal fato não só incorre na dificuldade de letramento dos escritores afrodescendentes como no constrangimento daqueles que conseguiram superar essa barreira, tornando-se professores universitários como é exposto no seguinte depoimento:

Um professor negro contou-me recentemente um episódio constrangedor: deu a primeira aula do semestre de uma disciplina da carreira de Medicina de uma universidade particular carioca para uma turma de 68 alunos com apenas dois negros. Quando entrou na sala dois dias depois, ao começar a segunda aula, alguns dos alunos brancos se surpreenderam e lhe disseram abertamente: “O que você faz aqui?”. “Vim dar aula, obviamente”,  respondeu. “Ah, mas nós pensamos que aquela aula era um trote!” Um professor negro em um curso de Medicina só pode ser um trote? (CARVALHO, 2006, p. 93)

Não existem respostas para a pergunta do autor da pesquisa: “Como conseguimos construir no Brasil um espaço acadêmico tão poderoso, numeroso e tão excludente?” (CARVALHO, 2006, p. 93)

As mulheres afrodescendentes igualmente sofrem com o choque do confinamento, conforme é demonstrado nos depoimentos a seguir:

Chegando à universidade, senti um baque grande, porque todas as pessoas eram de classe média, classe média alta, brancos, descendentes de europeus. Na minha turma éramos umas 45 pessoas, e dessas, apenas três negros – duas mulheres e um colega homem. Dentro desse meu susto, fui procurar na universidade formas de me manter lá. Entrei no programa Conexões de Saberes, que tinha foco na permanência na universidade de estudantes de origem popular, em que eram considerados, entre vários quesitos, a questão de raça e gênero. Éramos 25 bolsistas desse programa, todos de origem popular, com concepções bem diferentes de sociedade. O projeto se constituiu num espaço de trocas e debates e, também foi o lugar onde eu consegui me sentir em casa dentro da universidade. (grifo nosso) (WERNECK, 2012, p. 26-27)

Pelo depoimento acima, percebe-se um sentimento de não pertencimento em uma universidade e a necessidade de encontrar um lugar onde se sentisse alguém.

Eram 20 vagas e eu fiquei em 7º lugar. Quando eu saí da FIOCRUZ e vi a minha nota, fiquei bastante chateada e sabia porque eu estava sendo reprovada. Não era pela competência que eu tinha em fazer a prova, a entrevista, o projeto. Nada disso foi analisado, apenas olharam o meu fenótipo que vem carregado de toda a questão racial. (grifo nosso) (WERNECK, 2012, p. 30)

No depoimento acima, a seleção foi efetuada pelo critério fenótipo, ou seja, um racismo velado/proibido, mas comumente aplicado nas grandes empresas e universidades do País.

Estas situações não são privilégios do universo brasileiro, Carvalho (2006) salienta que no mundo o colonialismo português foi o mais “permissivo” deixando o negro assumir sua identidade. Em universidades norte-americanas, nas décadas de 1960-1970, não era permitido abordar as obras de Frantz Fanon – psiquiatra e ensaísta francês da Martinica, de ascendência francesa e africana – em sala de aula sob a pena de perder o emprego. (FANON, 2008)

A teoria de Fanon é que o racismo e o colonialismo deveriam ser compreendidos como formas socialmente geradas de se ver e de se viver no mundo, e no caso, os negros deveriam ser construídos como negros. Mas, essa construção se dá pela linguagem, pois é por meio dela que ocorre o reconhecimento, conforme explica:

Na linguagem está a promessa do reconhecimento; dominar a linguagem, um certo idioma, é assumir a identidade da cultura. Esta promessa não se cumpre, todavia, quando vivenciada pelos negros. Mesmo quando o idioma é “dominado”, resulta a ilegitimidade. Muitos negros acreditam neste fracasso de legitimidade e declaram uma guerra maciça contra a negritude. Este racismo dos negros contra o negro é um exemplo da forma de narcisismo no qual os negros buscam a ilusão dos espelhos que oferecem um reflexo branco. (FANON, 2008, p. 15)

Razão pela qual se faz urgente a valorização da cultura afro-brasileira a fim de que não se perca a sua riqueza ímpar, suas vivencias e experiências que fundamentaram a cultura brasileira, em detrimento da dominação branca.

DISCURSOS (DES)CONSTRUÍDOS NA TRAJETÓRIA ACADÊMICA DA ESCRITORA NEGRA

O fato é que o afro-brasileiro na sua caminhada acadêmica sofre dificuldades e obstáculos facilmente comprováveis em depoimentos e em dados estatísticos sobre a inserção do negro na academia, conforme demonstra Rodrigues:

(...) os estudos realizados por Cunha Jr. (2003), os quais examinam os históricos de cerca de dois mil mestres e doutores negros existentes no país, revela que a faixa  etária das candidaturas e os regimes de trabalho estão fora dos perfis privilegiados pelas  políticas e pelos programas de pós-graduação. Indicando que os negros sofrem discriminação dentro da academia, principalmente por não terem orientadores que se disponham a orientar  suas temáticas e por não existir, na grande maioria das Universidades, linhas de pesquisas que  abordem a questão étnico-racial.  (RODRIGUES, 2011, p. 101)

Florentina da Silva Souza doutora em Estudos Literários e pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais, pró-ativa na promoção da igualdade racial explica ser opcional do escritor a busca de uma identidade para a produção textual “negra”, conforme segue:

A escolha de uma produção textual que se define como “negra”, como objeto de estudo, evidencia a opção por lidar mais detidamente com uma outra parte da minha formação identitária, o afro, marcada pela cor da pele e pela necessidade de tornar patente a impossibilidade da transparência. Os textos de Sociologia, História, Antropologia, Estudos Culturais, Estudos Pós-coloniais e Black Studies se entrecruzam com debates, reflexões, aulas, seminários, leituras e discursos vários, dos quais me apropriei, atribuindo-lhes valores diferenciados. Uma apropriação que faz adaptações, realça o que se configura pertinente para o estudo dos periódicos, explora as possibilidades de remodelar e trair ou abandonar ideias e conceitos que não se enquadrem nas nuances por mim escolhidas. (SOUZA, 2005, p. 55)

Constatações estas de Florentina, obtidas por meio do estudo contínuo da produção literária afrodescendente a partir do século XX, produzindo material cognoscente fundamental para coligar textos onde há a indiscutível busca por uma identidade afro-brasileira.

Conceição Evaristo, doutora em Letras pela Universidade Federal Fluminense, além de atuar na área acadêmica, é consultora em assuntos afro-brasileiros, poetisa, romancista e ensaísta.  Em seu poema “Vozes-Mulheres” é possível viajar por toda a história do Brasil, mostrando claramente a violência contra o negro de uma forma límpida, triste e sem vitimização. Uma simples exposição da realidade vivenciada em um passado não muito distante.

lheres” de Conceição Evaristo (1990, p. 32)

A voz da minha bisavó ecoou
criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem — o hoje — o agora.
Na voz de minha filha
Se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.

Importa salientar na estrofe final que “O ontem – o hoje – o agora” na voz da filha se fará ouvir como um eco da vida-liberdade implica a existência ainda de grilhões, agora mais camuflados e proibidos, mas tão vívidos e doloridos quanto no tempo da avó. Essa seria o ressoar de Conceição frente a sua realidade acadêmica?

Inaldete Pinheiro, mestre em Serviço Social, uma das fundadoras do Movimento Negro, pesquisadora e militante busca em seu trabalho a valorização da afrodescendência, no que se refere à esfera individual e coletiva, demonstrando claramente que os ecos da escravidão se farão ouvir por muito tempo, até finalmente a coletividade africana reconstruir sua autoestima, onde o próprio ensino da História foi maquiado, conforme esclarece:

A abolição – Há abolição?

A escravização dos povos africanos foi a tática mais deprimente de inferiorização de uma coletividade. Tudo fizeram para retirar-lhe a humanidade, salvo o momento que valiam moeda. No mercado de troca e venda, os anúncios de jornais exibiam tributos à beleza física, à disposição para o trabalho, aos hábitos sadios; alcançado o objetivo de lucro retomavam à desgraça da desumanização, objetos descartáveis e entraram para a história oficial vinculados à única condição de escravos, como uma condição natural, inata, nada mais do que escravo. Foi esta história que a minha geração conheceu. O que fui encontrar escrito para as novas gerações?

(...) Concluindo, o texto repete o que a história oficial faz a muitos anos – a honra à Princesa Isabel na produção literária sobre a escravidão no período anterior a 1978, aqui registrada, é um discurso bem articulado que reforça a incapacidade da população negra escravizada de fazer a sua própria libertação, o discurso do livro didático vai para a literatura para jovens e crianças, para as ruas, praças, pontes, prédios, calendários, filmes, campos e cidades, condicionando uma eterna gratidão dos beneficiados, isto é, a população negra. É reforçada a lembrança das correntes, o chicote, a senzala, o sim senhor, o sim senhora, referências para manter a memória do passado escravo vivo. Escravo sem vida própria, escravo – sinônimo de negro. O branco, ora o branco, é o dono, o superior – isto está escrito nas entrelinhas nem tanto invisíveis da história oficial e permanece como uma prática do condicionamento da memória da descendência africana. (In: Racismo e antirracismo na literatura infanto-juvenil, p. 19, 22) (LITERAFRO, 2013)

A desconstrução identitária do afrobrasileiro se alicerçou em séculos de escravidão e de negação enquanto ser pela sociedade dominante (feudal e posteriormente branca) culminando em segregação velada, conspirações racistas e obstáculos em todos os campos acadêmicos e profissionais. Como alcançar essa identidade agora? Como soltar esse urro engasgado de anos e anos de opressão e repressão?

Maria Nazareth Soares Fonseca, doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais, escritora e pesquisadora, dedica-se aos estudos das literaturas africanas de língua francesa e das literaturas africanas de língua portuguesa, onde observou a negação da cidadania ao afrodescendente, enfatizando a existência de uma visão estigmatizante do negro, impossibilitando a este, a valorização de suas qualidades, reforçando o processo de exclusão social pelo fator racial por uma minoria denomina elite brasileira. (CARVALHO, 2003)

Em artigo com o título “Reflexões sobre a linguagem literária”, Maria Nazareth explora em três textos a exposição de vozes engasgadas frente a opressão em um espaço ainda não construído pelo escritor, utilizando-se de recursos da linguagem literária para expressar com o máximo de verossimilhança o sentimento embargado no peito, na mente e na garganta do poeta:

Vê-se, pois, nos textos examinados, que as referências espaciais e as construções metafóricas podem ser excelentes auxiliares para uma leitura mais pertinente de textos literários, porque ajudam a compreender as relações que estes produzem a partir do momento  em que o leitor lança sobre eles o seu olhar curioso ou indagador. Motivados por uma perturbação que impulsiona diferentes relações do texto com outros textos, os gestos de leitura ativam, como vimos, peculiaridades do trabalho que a literatura realiza ao tomar como tema a paisagem urbana, privilegiando, como se mostrou nos textos, as áreas marginalizadas e os espaços que obriga o escritor a observar estratégias de linguagens outras com as quais o discurso literário pode-se mostrar em intensa tensão. (FONSECA, 2014, p. 7)

Na ânsia de satisfazer os ímpetos do escritor é que os recursos da linguagem literária emergem, esboçando novas formas de compreensão e de apreensão de realidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebe-se pelo compacto estudo do discurso das escritoras acadêmicas pesquisadas, a existência de um diálogo para transpassar a exploração e a marginalização social imposta por uma pequena elite colonialista européia.

O discurso da mulher negra acadêmica demonstra uma carga elevada de estereótipos, de negação e de inferioridade do “eu”, emergida das peculiaridades originárias da raça, do gênero, da cultura africana.

Razão pela qual se torna primordial a divulgação de como se deu a desconstrução identitária afrobrasileira, decorrente do processo de escravidão, para a construção de uma identidade que envolva a nação como um todo.

É imprescindível e emergencial a geração de uma identidade brasileira, a qual envolva os afrodescendentes, saindo de padrões coloniais europeus que nada definem e/ou valorizam o cidadão brasileiro, o qual invariavelmente possui ascendência africana em algum momento de sua genealogia.

REFERÊNCIAS

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CARVALHO, José Jorge. O confinamento racial no mundo acadêmico. Revista USP, São Paulo, n. 68, p. 88-103, dezembro/fevereiro 2005-2006.

DAMASCENO, Benedita Gouveia. Poesia negra no modernismo brasileiro. Campinas, São Paulo: Pontes Editores, 1988.

DIOGO, Rosália. Mídia e Racismo: Ensaios. São Paulo: Editora Mazza, 2012.

DUARTE, Eduardo de Assis. Literatura afro-brasileira: um conceito em construção. Estudos de Literatura Brasileira Contemporânea, nº. 31. Brasília, janeiro-junho de 2008, pp. 11-23.

DUARTE, Eduardo de Assis. Mulheres marcadas: literatura, gênero, etnicidade. Terra roxa e outras terras, Revista de Estudos Literários, volume 17-A, dez. 2009.

Fanon, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

FONSECA, Maria Nazareth Soares. Reflexões sobre a linguagem literária. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Disponível em: http://www.pucminas.br/imagedb/mestrado_doutorado/publicacoes/PUA_ARQ_ARQUI20121019162153.pdf . Acesso em: 10 mar. 2014.

LITERAFRO. Inaldete Pinheiro de Andrade. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/data1/autores/107/dados1.pdf. Acesso em: 21 out. 2013.

LITERAFRO. Lia Vieira. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/data1/autores/117/dados1.pdf. Acesso em: 21 out. 2013.

LITERAFRO. Miriam Alves. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/data1/autores/107/dados1.pdf. Acesso em: 21 out. 2013.

LITERAFRO. Sônia Fátima da Conceição. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/data1/autores/130/dados1.1.pdf. Acesso em: 21 out. 2013.

NEIA. Pesquisas. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/neia/pesquisas.htm. Acesso em: 28 set. 2013.

OLIVEIRA Adriana Barbosa. Gênero e etnicidade no romance Úrsula, de Maria Firmina dos Reis. Dissertação (Mestrado).2007 Minas Gerais. Disponível em: http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/ECAP-73WGED/disserta__o___revis_o.pdf;jsessionid=DC25009F86EA14E3A009BCD96C47793E?sequence=1. Acesso em: 29 out. 2013.

PROGRAMA RETRATOS. Entrevista com Rosália Diogo. Disponível em:           http://www.youtube.com/watch?v=IqziHAB4EEM. Acesso em: 28 out. 2013.

RAÇA BRASIL. Entrevista Conceição Evaristo. Disponível em: http://racabrasil.uol.com.br/cultura-gente/96/artigo15673-3.asp. Acesso em: 30 out. 2013.

REAL. Pérola Negra. Disponível em: http://www.revistareal.com/nov2010_dita.php. Acesso em: 28 set. 2013.

REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. A escrava. Atualização do texto e posfácio de Eduardo de Assis Duarte. Florianópolis: Editora Mulheres; Belo Horizonte: PUC Minas, 2004.

RODRIGUES,  Édina do Socorro Gomes Rodrigues. Um estudo sobre intelectuais negros na academia entre 1970 e 1990: trajetória acadêmica de Florentina Silva Souza. Dissertação (Mestrado). 2011. Disponível em:  http://www.ppged.belemvirtual.com.br/arquivos/File/dissertedna.pdf. Acesso em: 30 out. 2013.

SOBRAL, Cristiane. Estação Literária Vagão. Volume 8 parte A, p. 165-167, dez. 2011. Disponível em:http://www.uel.br/pos/letras/EL/vagao/EL8AArt17.pdf. Acesso em: 20 out. 2013.

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SOUZA, Florentina da Silva. Afro-descendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

SOUZA, Florentina; LIMA, Maria Nazaré (orgs). Literatura afro-brasileira. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006.

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UFBA. Florentina da Silva Souza. Ciência e Cultura. Disponível em: http://www.cienciaecultura.ufba.br/agenciadenoticias/pesquisadores/florentina-da-silva-souza/ . Acesso em: 10 set. 2013.

Werneck, Jurema; IRACI, Nilza; CRUZ, Simone Cruz.(orgs) Mulheres negras na primeira pessoa. Porto Alegre: Redes Editora, 2012.

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A CRÍTICA ACADÊMICA DA LITERATURA AFRO BRASILEIRA

PELO VIÉS DE MARIA NAZARETH SOARES FONSECA

RESUMO

A base desse estudo se encontra no horizonte de expectativa do leitor, a qual é considerada como condicionante para a compreensão da função exercida pela crítica literária acadêmica. A especialização da crítica literária, tornando­a acadêmica, possui uma diversidade de nuances segundo os aportes teóricos utilizados. Haja vista o estudo literário se balizar nas abordagens histórica e linguística, compreendendo o discurso do escritor como resultado da influência de ambas e coloridas pela vivência individual. A literatura afro brasileira, por si só já possui peculiaridades marcantes, envolvendo a própria história do negro, merecendo um olhar crítico mais apurado e responsável. A historiadora mais indicada para efetuar tal olhar é a escritora e crítica literária Maria Nazareth Soares Fonseca, a qual demonstra em estudos a necessidade de ultrapassar algumas posturas que ainda se ligam a visão do negro “tutelado”, pois, ao falar  por ele, silenciam a sua voz e imobilizam reações concretas para desarticular os papéis estabelecidos pela sociedade. Sob esse viés é que a comunicação em questão articula a crítica literária acadêmica frente ao discurso literário da mulher afro brasileira.

Palavras-chaves: crítica literária; literatura afro brasileira; Maria Nazareth.

Aos olhares de Alceu Amoroso Lima (1945) o modus operandis da crítica literária é indireto, as entidades acrescentadas à natureza do discurso é o objeto de estudo imediato, pois o esforço do crítico se dá na forma artística da atividade discursiva.

Para Cândido (1985), sociólogo influenciado por Sussekind, a crítica acadêmica literária deveria focar a análise na ligação entre a obra e o ambiente ao invés de se limitar à abordagem estética, o ideal seria a união dos dois conceitos – articulando os aspectos da forma com os aspectos sociais e/ou históricos que abrangem o universo do autor e de sua obra. Confirma a lógica de Sussekind (1993) imprimindo relevância sociológica ao contexto crítico externo o qual se torna interno, ao mesmo tempo em que a crítica deixa de ser sociológica para se tornar apenas crítica.Nesse sentido, ao efetuar o julgamento sobre um discurso literário, o crítico terá a sua visão de vida colocada em segundo plano em relação à sua apreciação. Afinal, a boa qualidade do texto crítico transcende o registro de impressões positivas ou não sobre a obra analisada, mas sim, a capacidade cultural e intelectual de quem escreve é que efetua a diferença no resultado do texto produzido.

No universo da literatura afro brasileira é impossível se negar à análise do exterior, suscitada por Sussekind, face o próprio objetivo literário se fundamentar na recuperação da própria história do negro. A necessidade de impregnar legitimação ao discurso literário do negro produziu distorções, conforme esclarece Fanon (2008, p. 33) “o negro tem duas dimensões. Uma com seu semelhante e outra com o branco. Um negro comporta-se diferentemente com o branco e com outro negro. Não há dúvida de que essa cissiparidade é uma consequência direta da aventura colonial.” (p. 33)

Razão pela qual, Maria Nazareth Soares Fonseca – historiadora e crítica da literatura negra – é a pessoa mais indicada para realizar uma análise do discurso literário afro brasileiro. Da qual emerge o equilíbrio entre o ideário interno e externo do crítico frente ao ideário interno e externo do escritor negro.

A capacidade da análise imparcial de Maria Nazareth é notória e facilmente observável em suas produções críticas. Um bom exemplo desse autocontrole é demonstrado na análise das propostas poéticas de Marcos Dias e Edimilson de Almeida Pereira:

 

PAÍS INDIG(O BLUE) NAÇÃO (EXCERTO)
O emaranhado da desmemoria
tece uma cora de f/atos
capciosamente esquecidos
Na contracorrente
Gangas/Zumbis soçobram
Sem quase nunca chegar
Posta em questão a literatura
:
dobre monumento onde
nossos ancestrais esplendem
todo o palor
da sua i n v i s i b i l i d a d e
(Marcos Dias)
 

OS COMEDORES DE PALAVRAS (EXCERTO)
Vim de muito longe
Para as terras do senhor rei.
Venci o bicho silêncio
e minhas histórias contei.
(Edimilson Pereira)
 

Para Maria Nazareth ambos os escritores tentam imprimir em seus textos literários um cenário de denúncia frente a “segregação de indivíduos em espaços marcados por forte hierarquia ou definidos por ‘padrões periféricos’ legitimados por uma ordem político-social que vê a pobreza através de um padrão obediente à lógica do capital”. (FONSECA, 2015, p. 179)

Marcos Dias, segundo o viés da escritora crítica, focaliza em determinados textos os espaços marginalizados da cidade, expondo inconformismo frente ao quadro de miséria e às condições de vida dos excluídos demonstrados pelo uso de expressões tais como “um soco na cara”. A denúncia é forte em seus versos e é utilizada nos recursos formais. (p. 180)

A base teórica utilizada por Maria Nazareth abrange a teoria de Massey sobre espaço como produtor de relações e interações independente de sua amplitude – perpassando do menor para o maior –, tornando-se possibilidade existencial da multiplicidade onde distintas trajetórias coexistem e em constante construção e transformação. Teoria esta, considerada importante para a análise de discursos literários que “operam como práticas materiais e objetos estéticos produzidos por escritores sensíveis às questões sociais brasileiras.” (p. 182)

Assim, Marcos Dias, segundo Fonseca (2015), utiliza a sua trajetória de vida enquanto menino de rua, em Belo Horizonte, para denunciar a desigualdade e o abandono de elevada parcela da população nas grandes cidades.

Edimilson de Almeida Pereira, por sua vez, utiliza-se da definição de Bauman (2005, p. 20) sobre os “azuis” para demonstrar um conjunto e predicativos individuais geradores da exclusão – cor, origem e condição social – os quais apresentam as consequências da opressão ao utilizar termos como “rejeitos”, “dejetos”, “lixo”, “refugo”. (FONSECA, 2015, p. 190)

(...) para Bauman (...) convivemos em meio à deterioração das condições que permitiriam a formação de identidades a partir de elos de solidariedade.
(...) as identidades constituídas contemporaneamente são vazias de conteúdo. (SILVA, 2007, p. 64)

No tocante à questão identitária aprofunda Bauman

diferentes significados associados ao uso do termo ‘identidade’ contribuem para minar as bases do pensamento universalista. As batalhas de identidade não podem realizar a sua tarefa de identificação sem dividir tanto quanto, ou mais do que, unir. Suas intenções includentes se misturam com (ou melhor, são complementadas por) suas intenções de segregar, isentar e excluir. (BAUMAN, 2005, p. 85)

A análise crítica de Maria Nazareth frente aos autores Marcos Dias e Edimilson de Almeida Pereira, sugerindo que estes se utilizam de indicadores espaciais para facilitar o entendimento do leitor quanto as relações neles produzidas, configurando-se em excelentes ferramentas de construção discursiva. Apropriando-se da teoria de Ranciere (1995), Maria Nazareth esclarece que os autores capturam a perversidade política como forma expressiva da arte literária, tornando “as práticas artísticas formas de ação e de distribuição do comum” (FONSECA, 2015, p. 191)

O impacto causado pelos autores, Dias e Almeida, é visto por Stuart Hall como saudável ao mesmo tempo em que alerta quanto ao perigo do “perigo populista”, em face da explosão dos estudos culturais, visto como forma de teoria crítica na academia, representar um momento ameaçador a ser enfrentado, conforme esclarece Hall (2002), “os perigos não são lugares dos quais se deve fugir, mas lugares na direção dos quais devemos ir.” (p. 273). Portanto, esse risco eminente experimentado pela prática teórica da análise crítica desses textos, suplantando a obsessão crescente pelo difícil em detrimento do fácil, pelo incerto e precário como formas constituintes de um saber em processo. Revelando ousadia ao romper barreiras disciplinares, valores preestabelecidos, leituras consagradas do literário e fronteiras do lugar-comum. Desafio este, enfrentado vitoriosamente por Maria Nazareth, como signo e marca de criticidade de uma contemporaneidade a ser explorada, esmiuçada e principalmente, estudada sem véus ou meias palavras.

Maria Nazareth ao analisar a produção de Cuti, pseudônimo de Luiz Silva, esclarece que desde o seu primeiro escrito o autor possui a exclusão dos afrodescendentes como tema central. A estética de seu discurso passa por uma sofisticada ironia ao delinear os estereótipos circulantes numa sociedade ignorante dos problemas dos negros.

Acompanhando a produção literária do escritor, percebe-se que a visão de uma arte compromissada com a história dos negros brasileiros, uma literatura “fazedora de cabeça”, conforme se afirma em texto de 1987, incluído no volume Criação crioula, nu elefante branco, vai, todavia, cedendo luar a composições mais abertas às experimentações próprias do campo literário, embora nunca descartem a intenção de solapar os valores defendidos pela sociedade discriminatória brasileira. (FONSECA, 2011, p. 12)

É possível observar os coloridos mordazes na elaboração de seus discursos em Cadernos Negros, ao mesmo tempo, em outros textos é possível vislumbrar um processo de autorreflexão ao elencar os problemas enfrentados no cotidiano – a exclusão pela cor da pele e pela situação social – internalizando imagens negativas sobre si mesmo. Mas, a autoconsciência de Cuti, segundo Fonseca (2011) é observável em poemas como “Sou Negro”, “Eu negro” e “Negro pronto”, dos quais é exposto na íntegra o poema “Sou Negro”:

SOU NEGRO
Negro sou sem mas ou reticências
Negro e pronto!
Negro pronto contra o preconceito branco
O relacionamento manco
Negro no ódio com que retranco
Negro no meu riso branco
Negro no meu pranto
Negro e pronto!
Beiço
Pixaim
Abas largas meu nariz
Tudo isso sim
— Negro e pronto! —
Batuca em mim
Meu rosto
Belo novo contra o velho belo imposto
E não me prego em ser preto
Negro pronto
Contra tudo o que costuma me pintar de sujo
Ou que tenta me pintar de branco
Sim
Negro dentro e fora
Ritmo — sangue sem regra feita
Grito — negro — força
Contra grades contra forcas
Negro pronto
Negro e pronto
Negro sou!
(CUTI, 1978)

Assumir-se enquanto negro em uma sociedade que idealiza e idolatra a beleza demarcada por traços europeus, segundo Maria Nazareth, faz do poema de Cuti um enfrentamento direto a uma democracia racial permeada pela negação da existência de preconceitos. A aceitação da corporeidade negra é parte do processo de autoconscientização visando desarticular as marcas da escravidão incrustadas em seu corpo discriminado. Mesmo ciente de sua invisibilidade deflagrada perversamente pela exclusão, proclama sua transmutação em seu próprio opressor mediante um processo simbiótico de toda relação de violência, como expressa no excerto abaixo do poema Quebranto:

QUEBRANTO
Às vezes sou o policial que me suspeito
me peço documentos
e mesmo de posse deles
me prendo
e me dou porrada. (FONSECA, 2011, p. 15)

O fato é que Cuti, na análise crítica de Maria Nazareth, tem em sua produção literária como característica principal o enfrentamento da questão racial insistindo no “despertar da consciência do negro para os seus valores”, fornecendo à sua literatura uma dupla significação: denúncia da situação vivenciada pelos afrodescendentes no Brasil e a exposição de um campo de experiências singulares no nível da criação. Em vários poemas a principal motivação de Cuti é a concretização da negrura enquanto significante de diferença. (FONSECA, 2011)

Ao analisar o poeta Jônatas Conceição da Silva, Maria Nazareth esclarece que o foco do autor se encontra no diagnóstico da marginalização que o afrodescendente sofre no Brasil – “não tem acesso aos bens culturais, aos mínimos bens culturais que a Constituição Federal do Brasil lhes assegura” – assumindo-se como “porta-voz dos anseios da população marginalizada”. (FONSECA, 2011, p. 107-108)

O potencial do escritor afrodescendente é desenvolvido solitariamente em  face da dificuldade no acesso aos espaços culturais e ao ambiente familiar sem tradição literária. “Nós somos, em nossa grande maioria, autodidatas”. Ele cursou o mestrado em Letras na Universidade Federal da Bahia mediante esforços visando dirimir a segregação velada dirigida ao afrodescendente. Dessa forma, a sua produção narrativa segue um delineamento crítico, voltado para uma leitura que se produz atenta às dificuldades enfrentadas pelos afrodescendentes, tornando-o um escritor-militante:

Para Jônatas, a sua geração de 1970 é significativa no processo de construção de uma sociedade mais democrática para os afro-brasileiros. O seu empenho é um importante legado em nossos dias. Seu trabalho vivo fortalece as identidades afro-brasileiras e coincide com o propósito de Zumbi (...) Senhor dos caminhos: liberdade, liberdade, liberdade. Com essa imagem que Jônatas nos transmitiu, no último 02/04, tornou-se eterno porque os escritores não morrem. (FONSECA, 2011, p. 115)

Segundo Maria Nazareth, Jônatas deixa um legado expresso em diversas tonalidades de seu processo criativo, onde a memória – individual e coletiva – incentiva a produção de significativas estratégias textuais, “como um rio sempre em curso, alimenta os lugares por onde passa.” (FONSECA, 2011, p. 115)

Ao analisar Éle Semog, pseudônimo de Luiz Carlos Amaral Gomes, Maria Nazareth explica que a essência de seus textos se encontra direcionada na desconstrução de vários tipos de segregação impostos pela sociedade, utilizando-se para tal, de recursos literários denunciatórios ao mesmo tempo em que recorrem ao erotismo, à ironia e à chacota para encarar as dificuldades do seu cotidiano.  A seguir um excerto do poema Razões publicado em A Cor da Demanda (1997)

A poesia é o meu recante
A minha fuga.
Mesmo assim, escrevo poemas
Como quem joga pedras. (FONSECA, 2011, p. 55)

Enfatiza Maria Nazareth ser a ironia uma característica comum aos escritores que buscam demonstrar o racismo velado da sociedade brasileira. Dessa forma, o escritor se insurge contra situações em que o afrodescendente só é aceito se contentar-se mansamente em lugares predeterminados pela sociedade, ou ainda, por usar máscaras para transfigurar o seu corpo negro.

DANÇANDO NEGRO
Não sou festa para os teus olhos
de branco diante de um show!
Quando eu danço há infusão dos elementos
sou razão.
O meu corpo não é objeto,
sou revolução. (FONSECA, 2011, p. 56)

E outros momentos o escritor ironiza o comportamento submisso de poetas que adaptam suas produções aos moldes cânones

OUTRAS NOTÍCIAS
Não vou às rimas como esses poetas
que salivam por qualquer osso.
Rimar Ipanema com morena
é moleza,
quero ver combinar prosaicamente
flor do campo com Vigário Geral,
ternura com Carandiru,
ou menina carinhosa/trem para Japeri.
Não sou desses poetas
que se arribam, se arrumam em coquetéis
e se esquecem de seu povo lá fora. (FONSECA, 2011, p. 57)

A impossibilidade de harmoniza situações, apresentadas por Éle Semog, segundo Maria Nazareth, reforça o compromisso da literatura afro-brasileira no que se refere à exposição da realidade social vivenciada pelo afrodescendente como Vigário Geral, Carandiru e Japeri. A escrita literária não consegue apaziguar as diferenças conclamadas pela exclusão e miséria. Em outros momentos, o poeta utiliza seu discurso para revitalizar o folclore herdado dos escravos africanos, como as dança e as lutas:

DANÇANDO NEGRO
Quando eu danço
atabaques excitados,
o meu corpo se esvaindo
em desejos de espaço,
a minha pele negra
dominando o cosmo
envolvendo o infinito, o som
criando outros êxtases...

Pivete
Quando eu puxo o canivete
o que gosto mesmo
é de ver a tua cara de medo
igual ao medo que funk
na minha cara, com o perreguear
pelas grades da vida.

Maria Nazareth chama a atenção para a proclamação, utilizada por meio do fazer poético, em prol da mediação de ações para revitalização da herança africana comum aos afrodescendentes. Assim, o autor associa a escrita literária ao jogar pedras ou ouvir os atabaques/que nos chama à participação. Há um misto de ironia e vitalidade imortalizando lembranças trazidas à tona de um passado marginalizado, utilizando de forma lúcida e “com muita ternura, memórias e lutas que não podem ser esquecidas.” (FONSECA, 2011, p. 61)

O fato é que o negro carrega um estigma imagético, de mercadoria de troca, comum às culturas globais desenvolvidas a partir da escravidão. Depestre (1980), citado por Fonseca (2010), afirma que o mito semiológico hierarquizador e regulamentador do valor dos homens a partir da cor epidérmica marcou profundamente a história das Américas, depreciando no negro seus valores, suas crenças, seu trabalho e por fim, toda a sua vitalidade sociocultural.

No Brasil, Carvalho (1998), citado por Fonseca (2010), o negro além da carga estigmática, possui sobre si a culpa por não ter se preparado para as novas formas de trabalho no período pós-escravagista. “Este foi o alto preço que o negro teve de pagar por ter sido libertado dos antigos senhores e não assumido pelo capitalismo emergente e pela modalidade do trabalho, livre implantada no país.” A liberdade da escravidão vitimou o negro à pobreza e à inúmeros preconceitos, estando totalmente desprotegido pela política ficando à margem de projetos de identidade nacional, pois, “neles só pode figurar enquanto força de trabalho, que sustenta a mesma ordem que o exclui.” (p.88)

Com o passar do tempo ainda se vê uma morosidade na formulação de políticas democratizantes, conforme esclarece Florestan Fernandes

Na ânsia de prevenir tensões raciais hipotéticas e de assegurar uma via eficaz para a integração gradativa da população de cor, fecharam-se todas as portas que poderiam colocar o negro e o mulato na área dos benefícios diretos do processo de democratização dos direitos e garantias sociais (FERNANDES, 1995, p. 23, citado por FONSECA, 2010, p. 88)

No início do século XXI, ainda é possível identificar a cor da pobreza brasileira como negra e mulata, mesmo os brancos não ocupando segmentos de predominância. O fato é que o preconceito marginalizante não exclui o afrodescendente, mas sim, a ocupação de espaços periféricos. E infelizmente, o empenho para a obtenção de melhorias de caráter social, o próprio segmento marginalizado fortalece um discurso que confirma a eficiência da miscigenação.

Alucinações
quatro pretos
rolaram ladeira
oito pretos também rolaram
eram doze pretos SAGRADOS!
..não! sangrados
doze na madrugada
que esperam doze horas
para o rabecão passar.
Éle Semog (FONSECA, 2010, p. 87)

A sociedade brasileira, considerada harmônica e democrática, construiu imagens sobre o negro de forma depreciativa com estereótipos que não asseguram qualidades relativas “a cor”.

(...) ainda mais complexo na medida em que inexistem no país regras fixas ou modelos de descendência biológica aceitos de forma consensual. Afinal, estabelecer uma “linha de cor” no Brasil, é ato temerário, já que essa é capaz de variar de acordo com a condição social do indivíduo, o local e mesmo a situação. (SCHWARCZ, 1998, p. 182, citado por FONSECA, 2010, p. 90)

Para Maria Nazareth criou-se um cenário paradoxal, a miscigenação considerada como um dado negativo da cultura brasileira enquanto que é utilizada para demonstrar a absorção pacífica dos diferentes. A democracia racial, portanto, torna-se uma “redenção apenas verbal”, pois os centros urbanos revelam a exclusão social reforçada pela questão racial. Em consequência, é imperativo denunciar a situação vivida pelo afrodescendente brasileiro, atitude esta, assumida pela literatura que chamou para si a responsabilidade de descrever as desigualdades sociais e os preconceitos e estereótipos contra o negro e o mulato. (FONSECA, 2010)

Percebe-se mediante o esboço da análise crítica efetuada por Maria Nazareth seus julgamentos se alimentam de um movimento interminável questionamentos, face não seguir à risca um método fixo ou ideias congeladas – no caso os estigmas frente a cor negra – conforme esclarece Miller:

A desconstrução tenta resistir às tendências totalizantes e totalitárias da crítica. Tenta resistir às suas próprias tendências de repousar em algum sentido de dominação sobre a obra. Resiste a tudo isso em nome de uma gaia inquietude da interpretação, que vai além do niilismo, sempre em movimento, um ir além que nos faz permanecer no mesmo lugar, assim como o parasita está fora da porta mas também já está sempre dentro, como o mais sinistro e inquietante estranho dos hóspedes. (1999, p. 49)

Entretanto, Maria Nazareth enquanto crítica, corre o risco de estar sujeita na essencialização e na descontextualização das noções teóricas, ao serem transformadas.  Observa-se assim, na sua construção analítica um proceder ao deslocamento dos lugares de produção de saberes, assim como dos contra discursos que, ao se colocarem numa posição extrema e radical, revestem-se de caráter fundamentalista, diferencial e essencialista. Conforme esclarece Eneida Maria de Souza

Se os perigos da globalização se concentram, do ponto de vista cultural, na indefinição e na eliminação de diferenças, o contra-ataque pós-colonialista – uma outra forma de nomear os discursos do Terceiro Mundo – não deverá se afirmar como defesa da diferença. Levada a extremos, essa diferença pode se converter uma ideologia ultrapassada que se concentra na busca do autêntico, do outro lado da moeda que, a rigor, se apresenta como parte integrante de uma dupla articulação, ainda não afeita a binarismos ou à instauração de um polo único de atuação. É preciso contar com a formulação de um locus de enunciação migrante, na medida em que a identidade já se reveste como híbrida, ao falar e responder a parti de dois ou mais lugares, não conduzindo, portanto, a sínteses, fusões ou identidades estáveis. (2002, p. 13)

A exigência de uma imparcialidade e neutralidade na análise textual flexibilizam o saber e a sagacidade de Maria Nazareth, tornando-a exímia na análise crítica de textos exploradores de uma realidade sofrida da qual ela própria emerge, sem deixar que sua inconformidade contamine a precisão de seus julgamentos quanto a qualidade estética e formal dos autores. Sabendo ainda, ser necessária a criação identitária do afrodescendente brasileiro para transcender os estereótipos, criados ao longo de décadas, enraizados na cultura colonialista europeia da sociedade brasileira.

REFERÊNCIAS

AMOROSO LIMA, Alceu. O crítico literário. Rio de Janeiro: Agir, 1945

BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Zahar. 2005

CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade: estudos de teoria e história literária.7 ed, São Paulo: Nacional, 1985.

CUTI. Poemas de carapinha. 1978. In: AFRICA NOVOS OLHARES. Sou Negro. Disponível em: http://africanovosolhares.blogspot.com.br/2011/09/sou-negro.html. Acesso em: 10 mai. 2015.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

FONSECA, Maria Nazareth Soares (Org.) Brasil afro-brasileiro. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

FONSECA, Maria Nazareth Soares. Cuti. In: DUARTE, Eduardo de Assis (Org.) Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Curitiba: Imprensa UFMG, 2011, p. 11-30.

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FONSECA, Maria Nazareth Soares. Os anônimos no espaço da cidade: inter-relações poéticas. In: MACHADO, Rodrigo Vasconcelos (Org.) Panorama da literatura negra Ibero-Americana. Curitiba: Imprensa UFPR, 2015.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002

MILLER, J. Hillis. O crítico como hospedeiro. In: A ética da leitura. Rio de Janeiro: Imago, 1999.

RANCIERE, Jacques. Políticas da escrita. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.

SILVA, Josué Pereira da. (Org.) Por uma sociologia do século XX. São Paulo: Annablume, 2007.

SOUZA, Eneida Maria de. Crítica cult. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

SUSSEKIND, Flora. Papéis colados. Rio de Janeiro: UFRJ, 1993.

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A SAGA DA ESCRITORA NEGRA BRASILEIRA

NA BUSCA DA LEGITIMIDADE DA LITERATURA NEGADA

RESUMO

O silenciamento do discurso da mulher negra acadêmica decorreu da crítica estigmatizante e da subvalorização da produção literária. As escritoras, perseverantes no objetivo de serem reconhecidas, reescrevem as histórias e tentam incessantemente introduzi-las na produção textual brasileira. Nesse cenário, há um conflito interno – onde a escritora negra tenta mesclar tradição, memória e história pessoal no discurso – e o enfrentamento de barreiras externas – oriundas de um editorial excludente e de uma crítica segregadora – dos quais emergem um exercício autoficcional de valor literário inestimável. A ânsia de ser ouvida e reconhecida é peculiar no universo da escritora negra acadêmica. E nesse jogo complexo de realidades, sentimentos, traumas e revoltas, os textos literários são construídos. Assim, demonstra-se, nesta exposição, como algumas escritoras negras lidam com as dificuldades de exporem suas histórias, ao mesmo tempo em que buscam uma identidade para seus clamores, tornando-os “dignos” de serem ouvidos por uma sociedade e uma crítica discriminantes.

Palavras-chaves: escritora negra acadêmica; discurso; crítica literária; identidade.

ABSTRACT

The silencing of academic discourse black woman was due to the stigmatizing criticism and undervaluation of literary production. The writers, persevering in order to be recognized, rewrite the stories and try to constantly introduce them in the Brazilian textual production. In this scenario there is an internal conflict - where the black writer tries to merge tradition, memory and personal history in discourse - and coping with external barriers - derived from an exclusive editorial and a segregated criticism - of which emerge a self-fictional exercise of literary value priceless. The urge to be heard and recognized is unique in the world of academic black writer. And in this complex set of realities, feelings, traumas and upheavals, literary texts are constructed. Thus, it is shown, in this exhibition, as some black women writers deal with the difficulties of exposing their stories, while seeking an identity for their claims, making them "worthy" to be heard by a society and a critical discriminant.

Keywords: Academic black writer; Speech; Literary criticism; Identity.

Os conflitos vivenciados no discurso literário da escritora negra se caracterizam pela tentativa de recuperar e reescrever uma história, na realidade a própria história. Buscando continuamente uma identidade autenticada por toda a sociedade, conforme esclarece – em palavras os sentimentos e/ou ressentimentos anímicos – a escritora Evaristo Conceição: “...A nossa escrevivência não pode ser lida como história para ninar os da casa grande e sim para acordá-los de seus sonos injustos...”

A busca pela legitimação é o motivador da saga na literatura das escritoras negras acadêmicas, justificada pelo processo de integração do negro no Brasil, em paralelo à aceitação do modelo dos brancos onde o negro “deve tornar-se para ser aceito ‘um homem de alma branca’.” Fenômeno este constatado em toda a América Latina e denominado de “branqueamento”, o qual era alcançado por diversos meios como explicita Andrews (1991, p. 177) citado por Hofbauer (2006, p.20)

(...) por meio do sucesso econômico, por meio do cultivo de amigos e conhecidos brancos, por meio da adoção consciente das normas e do comportamento da vida dos brancos de classe média. O meio mais eficaz do branqueamento – e um dos mais buscados – é casar-se com uma pessoa mais clara (de preferência, branca) e produzir filhos mais claros (de preferência, brancos).

O fato é que o discurso de Conceição Evaristo tem fundamentos, pois há no Brasil um emudecimento dos brancos sobre o não reconhecimento de suas responsabilidades em relação às desigualdades raciais. Bento e Carone (2002), após uma pesquisa de mais de quatorze anos sobre racismo, percebem a omissão, a distorção e principalmente, a falta de reflexão do branco frente ao legado da escravidão, o qual traz em seu bojo danos muito mais profundos ao negro, tais como: exclusão onde são desvalorizados, indignos e passíveis de exploração.

Essa desconstrução e necessidade de reformulação do eu é demonstrado no desabafo de Miriam Alves (1985, p. 32) em seu livro Estrelas no dedo,

Compor, Decompor,
Recompor
Olho-me
espelhos
Imagens
que não me contém
Perdem-se
de meu corpo
as palavras
Decomponho-me
[...]
Recompondo-me
sentada
na
sala
de
espera
falando com
meus
fantasmas.

Os fantasmas encontrados por Miriam Alves são também formados pelos estereótipos da mulher negra, a qual assumiu proporções culturais tais que a escritora acadêmica afro-brasileira Sônia Fátima Conceição incorporou em seu discurso:

Lá vou eu, sem mais aquela, cabelo pixaim e bela.
Uma bunda grande sem qualquer trela que cubra ela.
Bela sei que sou e vou bela.
[...] E lá vou eu de novo, em busca de um lugar onde eu possa ser bela.
Cabelo pixaim, bela, bunda grande sem qualquer trela que cubra ela, bela. (CONCEIÇÃO, 1983, p. 55)

No excerto acima, a autora refaz as curvas da mulher afro-brasileira, demarcada pela constituição orgânica dos afrodescendentes, desconstruindo as estereotipias, registrando que a literatura em questão objetiva a necessidade premente em se autoafirmar dentro de uma sociedade estigmatizadora, onde a mulher negra era estigmatizada como sinônimo de lascívia e luxúria.

Igualmente a escravidão propiciou a desconstrução da identidade negra, como é descrito por Andrade (2001) de forma clarificante:

A escravização dos povos africanos foi a tática mais deprimente de inferiorização de uma coletividade. Tudo fizeram para retirar-lhe a humanidade, salvo o momento que valiam moeda. No mercado de troca e venda, os anúncios de jornais exibiam tributos à beleza física, à disposição para o trabalho, aos hábitos sadios; alcançado o objetivo de lucro retomavam à desgraça da desumanização, objetos descartáveis e entraram para a história oficial vinculados à única condição de escravos, como uma condição natural, inata, nada mais do que escravo. Foi esta história que a minha geração conheceu. O que fui encontrar escrito para as novas gerações?

(...) Concluindo, o texto repete o que a história oficial faz a muitos anos – a honra à Princesa Isabel na produção literária sobre a escravidão no período anterior a 1978, aqui registrada, é um discurso bem articulado que reforça a incapacidade da população negra escravizada de fazer a sua própria libertação, o discurso do livro didático vai para a literatura para jovens e crianças, para as ruas, praças, pontes, prédios, calendários, filmes, campos e cidades, condicionando uma eterna gratidão dos beneficiados, isto é, a população negra. É reforçada a lembrança das correntes, o chicote, a senzala, o sim senhor, o sim senhora, referências para manter a memória do passado escravo vivo. Escravo sem vida própria, escravo – sinônimo de negro. O branco, ora o branco, é o dono, o superior – isto está escrito nas entrelinhas nem tanto invisíveis da história oficial e permanece como uma prática do condicionamento da memória da descendência africana. (pp. 19- 22)

O fato é que a exclusão moral – sentida pelo negro – ultrapassa os limites imagináveis, graças a criação de processos psicossociais que estigmatizam e estereotipam com extrema desumanidade, gerando a desconstrução identitária do negro brasileiro.

O produto de tais distorções provocou uma cisão na dimensão do negro, conforme enfatiza Fanon (2008) como sendo provocada pelo período colonial: “o negro tem duas dimensões. Uma com seu semelhante e outra com o branco. Um negro comporta-se diferentemente com o branco e com outro negro. Não há dúvida de que essa cissiparidade é uma consequência direta da aventura colonial.” (p. 33)

Cisão esta evidenciada no poema de Esmeralda Ribeiro denominado “Trocar de Máscara”:

Talvez temendo entrar na arena dos leões
eu esconda a coragem nos retalhos
coloridos da vida.
A pálida lua traz o sabor das provações
transformando o olho em ostra
Cismo: a pele em roupa não tem mais razões,
para ser trocada e assim
me recolho e me cubro com a mortalha
De anulações. (SOUZA e LIMA, 2006, p. 23).

A ruptura com esse modelo somente será possível, segundo Fanon (2008, p. 181), mediante o reconhecimento do negro enquanto realidade humana, transcendendo questões naturais. Esse processo deve ser efetuado pelo negro e pelo branco, pois “A operação unilateral seria inútil, porque o que deve acontecer só pode se efetivar pela ação dos dois (...) Eles reconhecem a si próprios, como se reconhecem reciprocamente”. Como então, alcançar esse nível de integração e reconhecimento do negro para com o branco e vice-versa?

Giles Deleuze (1988) traz solução a esse impasse mediante o uso da repetição no discurso literário, ou seja, a utilização de uma conduta necessária e fundada apenas naquilo que não pode ser substituído, pois concerne a uma singularidade não trocável, não substituível. A identidade do negro, em específico da escritora acadêmica negra, é insubstituível e deve ser clamada até ser ouvida e legitimada.

Os reflexos, os ecos, os duplos, as almas, não são do domínio da semelhança ou da equivalência, e assim como não há substituição possível entre os verdadeiros gêmeos, também não há possibilidade de se trocar de alma. Se a troca é o critério da generalidade, o roubo e o dom são os critérios da repetição. Há, pois uma diferença econômica entre as duas. (p. 13)

O discurso literário das mulheres acadêmicas negras é recheado de repetição, pois enfatizam e martelam sobre uma mesma base: a necessidade de compreensão dos mecanismos de exclusão legitimados pela sociedade. Fato este notório e esclarecido por Souza e Lima (2006) da seguinte forma:

Por exemplo, quando nos referimos à literatura brasileira, não precisamos usar a expressão “literatura branca”, porém, é fácil perceber que, entre os textos consagrados pelo “cânone literário”, o autor e autora negra aparecem muito pouco, e, quando aparecem, são quase sempre caracterizados pelos modos inferiorizantes como a sociedade os percebe. Assim, os escritores de pele negra, mestiços, ou aqueles que, deliberadamente, assumem as tradições africanas em suas obras, são sempre minoria na tradição literária do país. (...) Houve, então, um momento em que se tornou inevitável discutir sobre a literatura produzida por negros ou que trata dos conflitos vividos pelos negros.  (p. 13)

A crítica quanto ao discurso da escritora acadêmica negra se limita, quando o faz, demonstrando um excesso na repetição de conteúdos. Contudo, é necessário apontar a questão da crítica como uma questão de gênero, ou seja, de um discurso que revela determinadas características que fazem com que o leitor reconheça-o a partir delas. Uma dessas características é o juízo de valor explícito do crítico e o tipo de abordagem que ele faz em relação à obra ou ao autor. Essa abordagem, carregada de juízo de valor, procura refletir os aspectos técnicos, literários ou teóricos da obra com o objetivo de impor uma cosmovisão que pretende dar conta do universo ficcional do autor. Fomentando uma poesia negra brasileira carregada de significado visando:

  1. a) a procura e/ou afirmação da identidade negra; b) a ausência de um código de cor básico e obrigatório; c) o uso de temas da vida e da população negra resultante de vivências próprias ou de estudos e observações conscientes; d) a reprodução de ritmos negros; e) a introdução na poesia de termos e palavras do vocabulário afro-brasileiro; f) a transformação e a reabilitação semântica da linguagem. (DAMASCENO, 1988, p. 69)

E é nessa construção do juízo de valor que se encontram a necessidade de silenciar as vozes negras em busca de justiça social e o não reconhecimento da própria responsabilidade no processo de exclusão.

Segundo Florentina Souza (2004), escritora afro-brasileira, o processo de construção da identidade negra abrange mais que a análise do discurso

A construção de uma descendência textual afro-brasileira passa pela compreensão de que as identidades são constituídas no discurso, mas forjadas nos embates entre grupos que se identificam com molduras ideológicas diferenciadas, buscando, no caso dos subalternos, reverter hierarquias, representações e significados. Em vez de uma formação fixa e imutável, as identidades devem ser entendidas como estratégias resultantes de desejos ou interesses de filiação a grupos específicos e, portanto, elas são sempre passíveis de reestruturação. (p. 279)

Portanto, a essência da repetição não se deixa explicar pela forma da identidade no conceito ou na representação. Na fronteira entre os conceitos da natureza e da liberdade, Deleuze (1988) exemplifica a repetição como um motivo de decoração: uma figura encontra-se reproduzida sob um conceito absolutamente idêntico. Porém, justifica ele, o artista não procede assim, pois não justapõe exemplares da figura, mas combina um elemento de um exemplar com outro elemento de um exemplar seguinte. No processo dinâmico da construção, o artista introduz um desequilíbrio, uma instabilidade, uma dessimetria, uma espécie de abertura. Esses elementos imbricam-se ao se diferenciarem, e é no conjunto que a figura adquire a estabilidade.

Razão pela qual, Michel Foucault, citado por Machado (2000), afirma que a obra literária não vem de uma espécie de brancura anterior à linguagem, mas justamente da repetição contínua da biblioteca. Essa figura da repetição contínua da biblioteca aparece como sendo o simulacro do livro, como sendo uma série de livros.

Assim, o que se recolhe na densidade aberta e fechada do livro, nas folhas em branco e ao mesmo tempo coberta de signos, nesse volume único mas semelhante a todos os outros, - pois cada livro é único e todos os livros se assemelham – é algo como o próprio ser da literatura. A literatura – que não deve ser compreendida nem como a linguagem do homem nem como a palavra de Deus, nem como a linguagem da natureza, nem como a linguagem do coração ou do silêncio - é uma linguagem transgressiva, mortal, repetitiva, reduplicada: a linguagem do próprio livro. (p. 146)

É essa linguagem diferenciada pelo clamor negro que se caracteriza a repetição do discurso literário das escritoras acadêmicas negras, marcadas por dor, sofrimento e ressentimento.

Essa sensibilidade é travada em matrizes repetitivas pelas escritoras negras, implicando a necessidade de falar sobre a identidade, que de certo modo está ligada ao conceito de repetição e diferença.  E para tanto, é indispensável que tal conceito (o da identidade) seja problematizado, como faz Michel Foucault (2002), quando o homem nasce para o saber, ele forma um par empírico-transcendental, qual seja, o de que ele é o sujeito que conhece, ao mesmo tempo em que é o sujeito a ser conhecido. Um duplo. Essa posição ambígua de objeto para um saber e de sujeito que conhece faz do homem “um soberano submisso, um espectador olhado”, que indicam limitações concretas à sua existência. E uma dessas limitações é a sua finitude. Para Michel Foucault, essa finitude marca o ser do homem e aponta como a primeira marca dessas finitude, exatamente a da repetição:

E o primeiro caráter com que essa analítica marcará o modo de ser do homem, ou antes, o espaço no qual ela se desenrolará por inteiro, será o da repetição - da identidade e da diferença entre o positivo e o fundamental: a morte que corrói anonimamente a existência cotidiana do ser vivo é a mesma que aquela, fundamental, a partir da qual se dá, a mim mesmo, minha vida empírica; o desejo que liga e separa os homens na neutralidade do processo econômico é o mesmo a partir do qual alguma coisa me é desejável; o tempo que transporta as linguagens, nelas se aloja e acaba por desgastá-las, é esse tempo que aloja meu discurso antes mesmo que eu o tenha pronunciado numa sucessão que ninguém pode dominar. De um extremo ao outro da experiência, a finitude responde a si mesma; ela é, na figura do Mesmo, a identidade e a diferença das positividades e de seu fundamento. (pp. 434-435)

Essa inseparabilidade dos contrários é o que permite entender com mais propriedade o conceito de diferença: a repetição implica na diferença, não no Mesmo, não na identidade. Na literatura, a repetição jamais poderá ser a mesma coisa repetida, pois cada verso reiterado, cada passagem repetida é diferente. É, assim, sempre a multiplicidade que encontramos, e a sensação de repetição é um efeito da polifonia, da teatralidade, do dialogismo, e não da uniformidade. É, por assim dizer, um artifício da própria repetição em seu mimetismo.

No texto literário, a repetição de sinais, letras, palavras, frases, imagens, é também sintoma, pressentimento, presságio, indício de um signo, de um símbolo, de um arquétipo, de uma coerência, de uma profundidade, de uma estrutura que flui e escapa para a superfície, para uma forma do visível e para um visível da forma, para uma espécie de manifestação, de uma “rede organizada de obsessões”. Mas redes, estruturas e obsessões da personagem, do texto, não do escritor ou da sociedade. Obsessões que fluem, mergulham e reaparecem exigindo nos pontos de irrupção, nas configurações que estabelece com outras conjunturas, com outros momentos ou outras imagens sempre outra interpretação.

Nesse sentido, Duarte (2007) explica que o escritor tem necessidade de expor o seu eu poético, reforçando-o até falar por si e pelos seus:

Esse sujeito de enunciação, ao mesmo tempo individual e coletivo, caracteriza não apenas os escritos de Conceição Evaristo, mas da grande maioria dos autores afro-brasileiros, voltados para a construção de uma imagem do povo negro infensa dos estereótipos e empenhada em não deixar esquecer o passado de sofrimentos, mas, igualmente de resistência à opressão. (p. 25)

Assim, a repetição seria como uma tentativa da personagem do narrador dizer suas preocupações existenciais. Se se repete é porque não é superficial, não é uma exceção. No entanto, a repetição jamais é realmente uma repetição, pois há reagrupamentos, rearranjos, e o conjunto repetido está sempre em outro contexto e qualquer gramática da repetição advém de uma teoria, como a de Deleuze e não da matéria literária. Há sensações, impressões, vivências, emoções que precisam, para se dizerem em sua dimensão, para dizerem o mundo a partir de sua perspectiva, se repetir e tornarem a se repetir. Algo que não se satisfaz com um dizer, não se define com uma aparição, não aparece com uma descrição, não pode obedecer a uma gramática, a uma sintaxe. E esse algo repetido não é simplesmente uma repetição, mas um complexo em suas várias arestas. Essas arestas (a diferença do Mesmo) aparecem pelas modificações provocadas pela repetição, pelo contexto sempre diferente ou igual, mas em outra circunstância, alargando o repetido e iluminando os veios interiores do texto, invertendo-o, iluminando planos escondidos, todos reinventados pela leitura.

Para Halbwachs (1990) o escritor só lembra e relembra aquilo que faz sentido dentro do seu próprio grupo social, conservando lembranças identificadoras e para chegar nesse nível faz-se necessário “reconstituir peça por peça a imagem de um acontecimento do passado para se obter uma lembrança”, seria um movimento de reconstrução até que o espírito do escritor se una ao do leitor, agindo reciprocamente até a completa sensação de pertencimento a uma mesma e única sociedade.

Levando em conta a teoria deleuziana, pode-se dizer que a repetição no discurso literário da escritora acadêmica negra não é um “voltar a andar o mesmo caminho”, ou “reviver o já-vivido”, é um clamor em busca de legitimação. Não é a imitação de uma primeira manifestação e nem se esgota em sua última aparição. Seu primeiro momento é apenas formal (não há início nem fim, apenas meio). Todas as repetições são primeiras e finais: o dentro que se expõe e força uma reflexão por parte do leitor.

Afinal, segundo Deleuze (1997, p. 13), “a literatura só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu”. As ponderações do filósofo sobre a escrita estão ao lado do devir, do deslocamento, do inacabamento que um texto proporciona aos que dele se aproximam em grande número e de várias maneiras. Em “A Literatura e a Vida”, Gilles Deleuze fala dessa complexidade da escrita que não cessa de dizer nunca o que tem a dizer, que não é finito o seu campo de atuação, que faz transbordar o vivido e o vivível.

Exemplo da necessidade do devir é o poema “Com o verbo na carne” de Cristiane Sobral (2010), onde é possível observar a necessidade da autora em transcender mediante o ouvir e o compreender de sua realidade, tornando-se una com toda a sociedade, independente de raça, por isso a necessidade do bisturi – internamente todos os humanos são iguais:

Esse texto deve ser aberto com bisturi
Para refletir sonhos alheios
Nas palavras, deixarei pistas de salvação
Letras a abrir caminhos
Sílabas de decisão

Esse texto deve ser aberto com bisturi
O verbo cheio de carne vai derramar sangue negro em seu rosto
Suas mãos brancas serão salpicadas de um vermelho quente e vivo
Nas palavras deixarei pistas de salvação

Esse texto deve ser aberto sobre a mesa
Para que reflita toda a sua luz
Depois, que seja oferecido
como o melhor tecido da última estação
Valorizado como pérola
Nunca distribuído aos porcos
Depois da refeição.

Pela literatura, a personagem de ficção também conquista seu devir, porque ao mesmo tempo em que traz traços marcadamente individualizados, sabemos que essa “aparente pessoa” pode superá-los, tornando-se, pela técnica narrativa, pelos recursos da ficção, além do estritamente pessoal. O ser ficcional permite o transbordamento de si mesmo, na medida em que é lido por um número elevado de leitores que o imaginam, considerando apenas o seu tipo físico, de maneiras diversas. A atenção de Gilles Deleuze se move no sentido de mostrar que a literatura trabalha minando o campo do possessivo atrelando o escritor e para o qual tudo parece convergir.

E nessa ânsia de satisfazer as lacunas identitárias da escritora negra acadêmica é que emerge o recurso da repetição enquanto discurso literário, esboçando novas formas de compreensão e de apreensão de realidades, por parte do leitor e exigindo em contrapartida, uma reflexão sobre a realidade do negro brasileiro.

REFERÊNCIAS

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A AMEFRICANIDADE DE LÉLIA GONZALEZ:

MARCO HISTÓRICO DA CONSCIÊNCIA DA MULHER NEGRA

RESUMO

Falar sobre Lélia Gonzalez é uma grande honra e se traduz em imensa responsabilidade, pois muito do luta para o reconhecimento da mulher negra no Brasil, deve-se à luta e ao exemplo de vida dessa grande guerreira. O objetivo do artigo é expor como as dificuldades enfrentadas por Lélia no decorrer de seu percurso pessoal, forjaram uma guerreira que usava como armas a sua voz, a sua caneta e o seu exemplo de vida. Ao cunhar o termo amefricanidade, Lélia tomou para si a missão de divulgar as características culturais do negro nascido nas Américas. Para tal, expunha o ideário a da mulher negra nos espaços púbicos e privados, demonstrando a existência de um ideário pejorativo oriundo de condicionamentos psicológicos de uma dominação colonialista branca. O conhecimento da causa, defendida por Lélia, era comprovado por sua formação – historiadora, antropóloga e filósofa – enquanto sentido em seu próprio cotidiano. A formação e o desenvolvimento do pensamento político feminista negro ocorrem devido a coragem destemida, da guerreira Lélia, ao transpor barreiras políticas, sociais e acadêmicas.

Palavras-chaves: Mulher negra; Amefricanidade; Lélia Gonzalez; Cultura; História.

Na luta de Lélia Gonzalez contra a ideologia neocolonialista no território latino-americano, o uso do termo amefricanidade se torna nítida crítica ao racismo imposto às negras devido a um ideário de “latinidade que legitima a inferiorização dos setores sociais cuja cultura e história não tem a Europa como referência.” (BAIRROS, 2000, p. 362)

Articulando esse conceito de forma astuta e cuidadosa escancarou a realidade dos descendentes africanos nas Américas, os quais eram vistos como corpos animalizados com voraz apetite sexual, principalmente no que se refere às mulatas.

A própria realidade brasileira era marcada – e continua sendo – por um processo reprodutor da pobreza e da miséria, a qual machucava e gritava no interior de Lélia a necessidade de expor, debater, discutir, raciocinar e buscar a conscientização da sociedade, segundo o olhar de uma mulher negra, guerreira, humilhada, discriminada, mas que da adversidade construiu teorias científica que validam o seu pensar, denunciando em 1980 essa situação, com a publicação do artigo “O lugar da mulher”:

Tanto a “Mãe Preta” quanto o “Pai João” têm sido explorados pela ideologia oficial como exemplos de integração e harmonia raciais, supostamente existentes no Brasil. Representariam o negro acomodado, que passivamente aceitou a escravidão e a ela correspondeu segundo a maneira cristã, oferecer a outra face ao inimigo. Entretanto, não aceitamos tais estereótipos como reflexos “fiéis” de uma realidade vivida com tanta dor e humilhação. Não podemos deixar de levar em consideração que existem variações quanto às formas de resistência. (GONZALEZ, 1982)

Chamar a atenção da academia e da pequena elite dominante foi proposital para Lélia, pois quebra o paradigma do valor do americano ao comprovar que a competência e a inteligência são qualidades do ser humano – independente de raça, cor e sexo –, qualquer um motivado para o estudo, pode atingir a excelência no entendimento.

Acontece que o modelo de desenvolvimento econômico brasileiro marcou, nas duas últimas décadas, a consolidação da sociedade capitalista em nosso país. Altas taxas de crescimento da economia e acelerada urbanização, estimuladas pela intervenção direta do Estado, resultaram num tipo de “integração” das regiões subdesenvolvidas às exigências da industrialização do Sudeste. Como sabemos, a lógica interna que determina a expansão do capitalismo industrial em sua fase monopolista entrava o crescimento equilibrado das forças produtivas nas regiões subdesenvolvidas. Estabelece-se, desse modo, o que Nun (1978) caracterizou como desenvolvimento desigual e combinado que, entre outros efeitos, remete à dependência neocolonial e a um “colonialismo interno”. (GONZALEZ, 2008, p.30)

Esse colonialismo interno, suscitado por Lélia, ocorre de forma camuflada e foi gradualmente instituído como normal, pois todos deveriam reconhecer o seu lugar, como Millôr Fernandes afirmava “no Brasil não existe racismo porque o negro reconhece o seu lugar”. Segundo Lélia essa afirmação é baseada no modelo hierárquico das sociedades ibéricas – tudo e todos tinham lugar determinado – os grupos étnicos diferentes eram dominados e sujeitos a um controle social e político violento, como exemplo histórico tem-se os mouros e judeus. Toda a América Latina obteve por herança uma ideologia de classificação social (racial e sexual) e em conjunto também adquiriu as técnicas administrativas e jurídicas. Em consequência, a sociedade latino-americana se estratificou, garantindo a superioridade do grupo dominante: o branco. Aos demais cabia a segregação. (GONZALEZ, 1988, p. 73)

Importa salientar que para Lélia defender os seus ideais de equidade e da valorização do negro, foi necessário trilhar um árduo percurso demarcado por preconceito, pois adentrava no campo acadêmico de predominância da elite dominante (branca e rica) da época. Lélia descendia de índios – mãe, Urcinda Serafim de Almeida, empregada doméstica – e de negros – pais, Acácio Joaquim de Almeida, ferroviário.  A mãe, em sua profissão de empregada doméstica, era tratada como mucama, uma escrava doméstica. Desde o ginásio sentiu o peso da discriminação e do processo de branqueamento exigido pela academia:

(...) fiz escola primária e passei por aquele processo que eu chamo de lavagem cerebral dado pelo discurso pedagógico-brasileiro, porque na medida em que eu aprofundava meus conhecimentos, eu rejeitava cada vez mais minha condição de negra. E, claro, passei pelo ginásio, científico, esses baratos todos (GONZALEZ, 1981, p. 202).

O processo de branqueamento, uma das modalidades de racismo a la brasileira, segundo Domingues (2002, p. 565), pode ser usado de várias formas, na análise de Hofbauer, de um lado pode ser visto como “a interiorização dos modelos culturais pelo segmento negro, implicando a perda do seu ethos de matriz africana” ou como um processo de “clareamento da população brasileira”, conforme é observado nos registros censitários do final do  século XIX e início do século XX.

O racismo latino-americano é suficientemente sofisticado para manter negros e índios na condição de segmentos subordinados ao interior das classes mais exploradas, graças à sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento. Veiculada pelos meios de comunicação de massa e pelos aparelhos ideológicos tradicionais, ela reproduz e perpetua a crença de que as classificações e os valores do Ocidente branco são os únicos verdadeiros e universais. Uma vez estabelecido, o mito da superioridade monstra sua eficácia pelos efeitos de estilhaçamento, de fragmentação da identidade racial que ele produz: o desejo de embranquecer (de “limpar o sangue”, como se diz no Brasil) é internalizado, com a simultânea negação da própria raça, da própria cultura. (grifo nosso) (GONZALEZ, 1988, p. 73)

Lélia sentiu e agiu de acordo com esse processo de branqueamento, afastando-se dos círculos relacionais negros:

Meu relacionamento [com a comunidade e o movimento negros] era sempre uma coisa estranha. Quanto mais você se distancia de sua comunidade em termos ideológicos, mas inseguro você fica e mais você internaliza a questão da ideologia do branqueamento. Você termina criando mecanismos pra você se segurar, houve por exemplo uma fase que eu fiquei profundamente espiritualista. Era uma forma de rejeitar meu próprio corpo. Essa questão do branqueamento bateu muito forte em mim e eu sei que bate forte em muitos negros também (O Pasquim, 1986, p. 9).

Na Faculdade eu já era uma pessoa de cuca, já perfeitamente embranquecida, dentro do sistema. Eu fiz Filosofia e História. E a partir daí começaram as contradições. Você enquanto mulher e enquanto negra sofre evidentemente um processo de discriminação muito maior. E, claro que, enquanto estudante muito popular na escola, como uma pessoa legal, aquela pretinha legal, muito inteligente, os professores gostavam, esses baratos todos... (GONZALEZ, 1979, p. 202-203 apud RATTS, 2010, p. 2).

Continua Ratts (2010, p. 3) relatando que Lélia seguia os padrões da época, alisando os cabelos ou usando vestidos sóbrios, travestindo-se como uma lady. “Mas ela era também ‘aquela pretinha legal’ que estudava bastante, que se destacava como estudante e depois como professora, chegando a ser tradutora de livros franceses de psicanálise.”

Eu usava peruca, esticava cabelo, gostava de me vestir como uma lady (...) Desnecessário dizer que a divisão interna da mulher negra na universidade é tão grande que no momento em que você se choca com a realidade de uma ideologia preconceituosa e discriminadora que aí está, a sua cabeça dá uma dançada incrível (...). A partir daí fui transar o meu povo mesmo, ou seja, fui transar o candomblé, macumba, essas coisas que eu achava que eram primitivas. (OUCHANA, 2015)

Antes de atingir os 40 anos, Lélia se reencontra com a sua essência amefricana, final dos anos 1960 e início dos anos 1970, graças a um movimento estadounidense, africano e brasileiro onde as mulheres negras começa a usar o cabelo em seu estado natural, o chamado black power, vestindo roupas de cores vivas e quentes antes desestimuladas. Assim, Lélia se transforma na “ativista negra e feminista que se tornou uma figura pública no cenário nacional e internacional.” (RATTS, 2010, p. 3)

Nesse retorno às origens é que Lélia cunha o termo amefricanidade indicando ainda, que o idioma utilizado pelo negro era o “pretuguês”. Com isso, trabalha incansavelmente para reinterpretar e reconstruir a história brasileira sob o viés da mulher negra – a Lélia Gonzalez, fiel a sua essência negra, vomita ao mundo com toda a pompa acadêmica as especificidades da mulher negra, pressionando a sociedade ao debate antirracista e feminista.

Segundo Ouchana (2015), pretuguês para Lélia era o idioma português falado no Brasil: a mistura do português de Portugal com as línguas africanas.

A Lélia dizia que nós não falamos no Brasil o português, mas o pretuguês, que é uma mistura do português de Portugal com diversas línguas africanas, como o Kimbundu e o Ambundo. E ela vai atribuir à mulher negra a responsabilidade pela africanização da cultura brasileira. A Lélia tem um texto interessantíssimo publicado num livro chamado Lugar de Negro, onde ela faz uma releitura da mãe preta. Ela diz que ao contrário do que os livros didáticos procuram mostrar, aquela figura resignada, acomodada com sua condição no período escravista, a mãe preta era uma figura de resistência porque ao amamentar e educar as crianças brancas, ela estava africanizando a nossa cultura.

Buscando fugir do academicismo, Lélia também tinha uma escrita e uma linguagem muito particular:

A gente não quer ficar forçando ninguém a ficar fazendo o que não pode, o que não gosta. A gente respeita muito essas diferenças individuais e a gente cria assim uma espécie de frente de trabalho. Quem tá afim de trabalhar na favela, vai pra favela trabalhar. Quem tá afim de ir pro presídio das mulheres vai pro presídio. Quem tá afim de ir para o movimento de mulheres, vai para o movimento de mulheres discutir as questões. (GONZALEZ, 1945 apud BARRETO, 2005, p. 28)

O movimento feminista brasileiro reemerge, nos anos 1970, pela organização de mulheres escolarizadas que se reuniam visando discutir os direitos da mulher como um todo, sem abordar a questão étnico-racial. Essa lacuna fez com que Lélia tomasse a frente e adentrasse no movimento negro, onde percebeu a existência do machismo do homem negra sobre as mulheres negras. Assim, Lélia dizia que a mulher negra sofria da tríplice discriminação: racial, sexista e de classe. Razão pela qual, iniciou um movimento que fomentou a criação de organizações onde as mulheres negras tinham voz para colocar suas demandas.

Por mais que a gente seja engajada em movimentos negros, existe um limite. Por exemplo, eu, Antônia, mulher branca, empoderada, com mestrado e doutorado, trabalho em ONG feminista e sou militante de movimentos negros. A minha militância tem um certo limite porque só quem sofre a discriminação sabe o que é. É diferente você compartilhar uma luta e sofrer na pele. Eu acho que a Lélia colocava muito isso, ela queria mobilizar as mulheres negras nessa luta contra o racismo. Na minha opinião, essa ideia de mobilização política foi o grande legado que ela deixou para a militância. (...) Porque a questão racial não é exclusiva da população negra, é um problema de âmbito nacional.  (OUCHANA, 2015)

Frente a esse cenário efervescente da busca de equidade da mulher, Lélia pode analisar profundamente e de forma crítica a postura político-ideológica de luta e de resistência negra, concluindo existir uma passividade, conforme esclarece: “Continuamos passivos em face da postura político-ideológica da potencia imperialisticamente dominante da região: os Estados Unidos. Foi também, por esse caminho, que comecei a refletir sobre a categoria de amefricanidade” (GONZALEZ, 1988, p. 75)

No decorrer de sua análise, Lélia explica que tanto o Brasil quanto a região caribenha, possuíam similaridades na africanização, ao passo que os Estados Unidos mantiveram uma repressão cultural desumana nos africanos escravizados, chegando ao ponto de amputar as mãos daqueles que tocassem o atabaque.

O puritanismo do colonizador anglo-americano, preocupado com a “verdadeira fé”, forçou-os à conversão e à evangelização, ou seja, ao esquecimento de suas Raízes africanas. (...) a resistência cultural manteve-se clandestinamente, sobretudo em comunidades da Carolina do Sul. (...) A Guerra de Secessão trouxe-lhes a abolição do escravagismo e com esta, a Klukluxkan, a segregação e o não direito à cidadania. As lutas heroicas desse povo discriminado culminaram com o Movimento pelos Direitos Civis, movimento que comoveu o mundo inteiro e que inspirou os negros de outros lugares a também se organizarem e lutarem por seus direitos. (GONZALEZ, 1988, p. 75)

Não era apenas Lélia que estava aberta e atenta à realidade existente abaixo da névoa da dominação branca, Joel Rufino, historiador, também já havia percebido que o momento de agir era agora, a sociedade oprimida pela ditadura estava pronta para romper os grilhões míticos existentes:

(...) o colapso do mito da democracia racial que permitiu avançar o movimento negro, nos anos setenta. Ele não abriria caminho sozinho, pela exclusiva pertinência das suas lideranças; mas pela conjugação destas condições históricas favoráveis, que liquidaram em bloco o pacto ideológico que confortava a noção anterior de Brasil. (SANTOS, 1985, p. 298)

Por meio do ativismo de Lélia e outros foi criado, em 1974, o Instituto de Pesquisa da Cultura Negra (IPCN), momento histórico de tensão social e política onde era possível expressar uma militância contra o racismo, questionando e denunciando práticas abusivas e discriminatórias da Sociedade Brasileira. Nesse local se abrigava a intelectualidade da esquerda, tornando Lélia conhecida nacionalmente. O fato é que a formação acadêmica – história e filosofia – de Lélia permitiu o desenvolvimento de reflexões sobre a questão racial brasileira, bem como, houve influência do pensamento de Simone Beauvoir, fornecendo-lhe “consciência que sabia muito e articulava magnificamente: o social, o psicológico, o ideológico, a luta de classes, a opressão do povo negro, sobre a acomodação e sobre mulher”. (BARRETO, 2005, p. 33)

Partindo dessa bagagem e munida de muita motivação e inspiração, Lélia se detém sobre os termos afroamericano (Afro-American) e africanoamericano (African-American), os quais indicam a hipótese de existência apenas de negros nos Estados Unidos. Essa terminologia deriva do fato de os estadunidenses se intitularem americanos e negarem a existência não só de negros, mas também, de outros países do continente Americano, como os países da América do Sul, da América Central, da América Central Insular[1] e da própria América do Norte. Nesse sentido, chega a ironizar:

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[1] A América Central Insular é a porção da América Central que se encontra dividida entre diversas ilhas. É composta pelos seguintes países: Bahamas, Cuba, Haiti, Jamaica e República Dominicana. Divide-se ainda, em Grandes Antilhas, que são as grandes ilhas do Mar do Caribe, e Pequenas Antilhas, que são as ilhas caribenhas menores.  Possui colonização espanhola, francesa, inglesa e holandesa, presença marcante do negro, também índios e brancos descendentes do colonizador, no Haiti 90% da população é negra. (SEEDPR, 2015)

É interessante observar alguém que sai do Brasil, por exemplo, dizer que está indo para a “a América”. É que todos nós, de qualquer região do continente, efetuamos a mesma reprodução, perpetuamos o imperialismo dos Estados Unidos, chamando seus habitantes de “americanos”. E nós, o que somos, asiáticos? (GONZALEZ, 1988, p. 76)

Essa condição opressiva estadunidense agrava o alcance da própria consciência negra brasileira, pois o afro-brasileiro se encontra cativo de uma linguagem racista, razão pela qual, Lélia propõe o uso do termo amefricanos para “designação de todos nós” – descendentes africanos que moram nas Américas. (GONZALEZ, 1988, p. 76)

O termo amefricanidade, continua Lélia, abrange várias implicações culturais e políticas visando a democratização mediante a transposição de limites territoriais, linguísticos e ideológicos, fornecendo terreno fértil para a criação de novas perspectivas que considerem a América como um todo, bem como, incorporando todo o processo histórico e a dinâmica cultural manifestada pela adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas, segundo a ótica do descendente africano, ou seja, é afrocentrada e referenciada em modelos como o akan[2] da Jamaica e o yorubá, banto e ewe-fon[3] do Brasil, construindo assim, uma identidade étnica.

Alguns exemplos da influência no vocabulário português-brasileiro são:

- Aportes lexicais: formado por palavras africanas apropriadas em diversas áreas culturais, conservando a forma e o significado originais:

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[2] A cultura akan ou ashanti se baseava numa tradição de nações guerreiras e numa história de mulheres orgulhosas e respeitadas, como a Rainha Nanny, a qual se tornou Heroína Nacional da Jamaica em 1976. Isso implicou no reconhecimento nacional da contribuição dos Maroons em assegurar a liberdade da escravidão imposta pelos britânicos. Os Maroons de Windward, tendo a Rainha Nanny como sua líder, constituem um modelo de resistência, rebelião e sobrevivência. A própria Rainha Nanny é uma figura simbólica para todos aqueles que sofrem a opressão. (GELEDÉS, 2009)

[3] O iorubá é uma língua única, constituída por um grupo de falares regionais concentrados no sudoeste da Nigéria (ijexá, oió, ifé, ondô, etc.) e no antigo Reino de Queto (Ketu), hoje, no Benim, onde é chamada de nagô, denominação pela qual os iorubás ficaram tradicionalmente conhecidos no Brasil. Já o ewe-fon é um conjunto de línguas (mina, ewe, gun, fon, mahi) muito parecidas e faladas em territórios de Gana, Togo e Benim. A região banto compreende um grupo de 300 línguas muito semelhantes, faladas em 21 países do continente africano. Sua principal característica é o sistema de classes que funciona por meio de prefixos que se ordenam em pares (cl. 1/2, cl. 3/4, etc), para exprimir a oposição singular e plural dos nomes, o aumentativo, o diminutivo, o locativo, o infinitivo dos verbos, permitindo ainda delimitar o sentido desse mesmo nome, como no caso da cl. 1/2, com prefixos mu- / ba-, referentes a seres humanos, a exemplo de ba.ntu, plural de mu.ntu, homem, ou, então, muleke e mukama. Da classe ku-, a dos termos verbais (ku- é semelhante ao to do infinitivo verbal do inglês, to speak, falar), temos, entre outros, ku.xila, dormitar, ku.xinga, insultar, ku.babata, tatear, enquanto da classe ka-, a dos diminutivos, temos kalunga, kamundongo, rato pequeno.(CASTRO, 2015, p. 4)

  1. a) Simples: samba, xingar, muamba, tanga, sunga, jiló, maxixe, candomblé, umbanda, berimbau, maracutaia, forró, capanga, banguela, mangar, cachaça, cachimbo, fubá, gogó, agogô, mocotó, cuíca.
  2. b) Compostos: lenga-lenga, Ganga Zumba, Axé Opo Afonjá. (CASTRO, 2015, p. 9)

- Aportes por decalque: palavras do português-brasileiro que tomaram um sentido especial:

  1. a) por tradução direta de uma palavra africana, mãe-de-santo (ialorixá), dois-dois (ibêji), despacho (ebó), terreiro (casa de candomblé);
  2. b) em substituição a uma palavra africana considerada como tabu, a exemplo de “O Velho”, por Omulu, e “flor do Velho”, por pipoca. (CASTRO, 2015, p. 9)

- Aportes híbridos: palavras compostas de um elemento africano e um ou mais elementos do português-brasileiro:

bunda-mole, espada-de-ogum, limo-da-costa, pó-de-pemba, Cemitério da Cacuia, cafundó de Judas. Nessa categoria estão os derivados nominais em português, a exemplo de molecote, molecagem, xodozento, cachimbada, descachimbada, forrozeiro, sambista, encafifado, capangada, caçulinha, dengoso, bagunceiro. (CASTRO, 2015, p. 9)

Apesar de ser nítida a influência da cultura africana no vocabulário português-brasileiro, Lélia salienta que o problema do reconhecimento da amefricanidade, possui fundamentos mais profundos, adentrando na própria questão da África não possuir uma história própria:

A África é o continente “obscuro”, sem uma história própria (Hegel); por isso, a Razão é branca, enquanto a Emoção é negra. Assim, dada a sua “natureza sub-humana”, a exploração socioeconômica dos amefricanos por todo o continente, é considerada “natural”. Mas, graças aos trabalhos de autores africanos e amefricanos (...) sabemos o quanto a violência do racismo e de suas práticas despojaram-nos do nosso legado histórico, da nossa dignidade, da nossa história e da nossa contribuição para o avanço da humanidade nos níveis, filosófico, científico, artístico e religioso; o quanto a história dos povos africanos sofreu uma mudança brutal com a violenta investida europeia, que não cessou de subdesenvolver a África (Rodney); e como o tráfico negreiro trouxe milhões de africanos para o Novo Mundo... (grifo nosso) (GONZALEZ, 1988, p.77)

A questão da obscuridade do continente africano também é enfatizada por Nascimento (2008), indicando ser um estereótipo construído pelo ocidente:

Predomina na consciência ocidental um estereótipo da África como continente escuro e obscuro, abrigando tribos primitivas, imóveis no tempo e no espaço, com suas culturas arcaicas e estáticas. De acordo com essa imagem, não haveria comunicação ou troca de ideias entre as várias etnias africanas, e muito menos entre elas e o restante do mundo, sobretudo nos tempos antigos.

A realidade histórica é o contrário desse estereótipo. Desde seus primórdios, a África tem sido o palco de intensas movimentações, migrações, trocas comerciais e culturais. (...) Com efeito, o africano e sua cultura se fizeram presentes em todos os cantos do mundo antigo. (grifo nosso) (NASCIMENTO, 2008, p. 80)

Essa força do africano é observável na própria história dos amefricanos, conforme esclarece Lélia ao expor a visão do afroamericano:

Ao adotarem a autodesignação de afro/africanoamericanos, nossos irmãos dos Estados Unidos também caracterizam a denegação de toda essa rica experiência vivida no Novo Mundo e da consequente criação da Améfrica. Além disso, existe o fato concreto dos nossos irmãos de África não os considerarem como verdadeiros africanos. O esquecimento ativo de uma história pontuada pelo sofrimento, pela humilhação, pela exploração, pelo etnocídio, aponta para uma perda de identidade própria, logo reafirmada alhures (o que é compreensível, em face das pressões raciais no próprio país). Só que não se pode deixar de levar em conta a heroica resistência e a criatividade na luta contra a escravidão, o extermínio, a exploração, a opressão e a humilhação. Justamente porque, enquanto descendentes de africanos, a herança africana sempre foi a grande fonte revificadora de nossas forças. (...) Assumindo nossa Amefricanidade, podemos ultrapassar uma visão idealizada, imaginária ou mistificada da África e, ao mesmo tempo, voltar o nosso olhar para a realidade em que vivem todos os amefricanos do continente. (GONZALEZ, 1988, p. 78)

Nesse sentido, Lélia evoca a necessidade de utilizar a linguagem para fomentar o entendimento da realidade do amefricano, a qual deve ser clara e afrocentrada, substituindo a visão eurocêntrica pela explosão criadora da amefricanidade.

Na definição do termo amefricanidade, Lélia chegou a evocar a diáspora negra[4], mas, infelizmente, não conseguiu se aprofundar deixando lacunas em ambos os estudos em face de sua morte súbita. Nesse contexto, Barreto (2005), efetua uma dura crítica indicando:

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[4] Terceira diáspora é o deslocamento de signos – textos, sons, imagens – provocados pelo circuito de comunicação da diáspora negra. Potencializado pela globalização eletrônica e pela web, coloca em conexão digital, os repertório culturais de cidades atlânticas – ícones, modos, músicas, filmes, cabelos, gestos, livros. A primeira diáspora se dá pela via da escravidão na história moderna com os deslocamentos do tráfico atlântico; a segunda diáspora ocorre pela via dos deslocamentos voluntários, como o retorno de ex-escravos para a África e o vaivém em massa de povos negros, como a migração de jamaicanos e nigerianos para Londres; de cubanos e sul-africanos para Nova Iorque; de martinicanos e beninenses para Paris; de angolanos para Lisboa e Brasil. Esses deslocamentos provocaram o redesenho da ambiência cultural do mundo atlântico. (GUERREIRO, 2010, p. 10)

A nosso ver, a categoria apresenta problemas por não conseguir se definir de forma distinta do conceito da diáspora, se mantendo ambígua. Por outro lado, o ponto que poderia ser o diferenciador do conceito é mencionado – ponto este que seria a relação entre afro-descendentes e populações indígenas na construção do novo mundo. A autora concentra-se no Brasil e no Caribe, mas esquece-se de países da América com populações majoritariamente indígenas como México e Guatemala, por exemplo. Além disso, a categoria estabelece uma ligação direta com as ideias afrocêntricas de Molefi Assante, marcado por algumas distorções e exagerações da história a efeito de exemplo da sua teoria. Um ponto interessante sobre o conceito de amefricano é que ele seria uma “resposta” ao african-american dos negros estadunidenses. Para Lélia o termo african-american nega toda a experiência vivida no Novo Mundo e apaga toda a experiência dos verdadeiros africanos na África. A autora adiantou-se ao movimento feito pela própria intelectualidade afro-americana na década de 1990 em rever muitos dos seus conceitos. A insistência de Lélia em desconstruir o termo africanamerican também respondeu as acusações frequentes de que o movimento negro brasileiro seria uma cópia do movimento negro estadunidense. Lélia também critica a visão dos african-american sobre uma África fantasiosa, presente em alguns setores dos movimentos negros dos dois países. (p. 50-51)

Segundo Ratts e Rios (2010), Lélia em entrevista concedida a Jônatas Conceição da Silva, em 1991, diz ter se dedicado em excesso ao trabalho e ao ativismo político, fazendo com que se inserisse em um mundo onde era necessário o sacrifício pessoal, o narcisismo, a cobrança exagerada de si mesma e do outro:

Eu vejo meu próprio caso (...), é uma autocrítica que eu estou fazendo também. Eu achava que tinha que estar em todas, me jogando loucamente, e meu projeto pessoal se perdeu muito, agora que eu estou catando os pedaços para poder seguir a minha existência enquanto pessoinha que sou. E a gente sai muito ferido e machucado dessa história toda. Machucado não só porque você investiu demais tipo de projeto, mas machucado também pelas porradas que outros lhe dão, não há dúvidas. A questão da militância tem que ter esse sentido, e aí nós temos que aprender com os nossos antigos, os africanos, esse sentido da sabedoria, esse sentido de saber a hora em que você vai interferir e como você vai interferir. (Jornal do MNU, 1991, p. 9, apud RATTS & RIOS, 2010, p. xcii-xciii)

Essa dedicação extrema levou a outros militantes, como Eduardo Oliveira e Oliveira, ao suicídio em 1980, enfatiza Ratts (2010). Uma mulher com uma história de vida marcada por tragédias (viuvez precoce, suicídio de amigos), discriminação, lavagem cerebral visando o embranquecimento na academia, problemas de saúde e sem tempo para sua vida pessoal que se mantém forte, impávida e determinada a lutar pela identidade negra, não teve tempo suficiente para terminar sua obra-prima: a construção da identidade do amefricano.

A contribuição de Lélia Gonzalez, seja da sua prática militante ou da sua produção acadêmica, foi e é preciosíssima para que o afro-brasileiro perceba a sua essência africana, valorize-a e principalmente, não a esconda sob o véu do embranquecimento ainda existente da cultura neocolonialista. À mulher negra, o legado de Lélia faz toda a diferença, extirpando o estereótipo degradante e colocando em cena a audácia e altivez da herança africana, tal como demonstrou Nanny Queen na Jamaica, demonstrando ser possível a luta contra o sexismo e o racismo.

As lacunas do estudo sobre amefricanidade, encontradas por Barreto (2005), são corretas, mas estas não existem por descuido, tendenciosidade ou incompetência de Lélia Gonzalez, e sim pela escassez de tempo para fazer tudo o que ela gostaria de ter feito em vida.

Essas lacunas são, na realidade, um convite aos amefricanos acadêmicos para terminar de delinear um conceito elaborado por Lélia, colocando em pauta novamente o debate e a discussão da identidade do afro-brasileiro, quiçá do próprio brasileiro, o qual sofreu influência colonial de todo o globo, pode-se dizer de forma análoga que o povo brasileiro é um patchwork cultural, sobressaindo-se com o melhor de cada etnia e evoluindo continuamente por sua predisposição em discutir na busca da equidade e da justiça social.

REFERÊNCIAS

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Barreto, Raquel de Andrade. “Enegrecendo o feminismo” ou “Feminizando a raça”: narrativas de libertação em Angela Davis e Lélia Gonzáles. Dissertação (Mestrado em História) Departamento de História. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2005.

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DOMINGUES, Petrônio José. Negros de Almas Brancas? A ideologia do branqueamento no interior da comunidade negra em São Paulo, 1915-1930. Estudos Afro-Asiáticos, Ano 24, nº 3, 2002, pp. 563-599.

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Guerreiro, Goli. Terceira diáspora, culturas negras no mundo atlântico. Salvador: Corrupio, 2010.

NASCIMENTO, Elisa Larkin. (org.) A matriz africana no mundo. São Paulo: Selo Negro, 2008.

OUCHANA, Deborah. Projeto homenageia Lélia Gonzalez, pesquisadora que teorizou sobre o pretuguês, mistura do português de Portugal com línguas africanas. Revista Língua. Edição 116, junho, 2015. Disponível em: http://revistalingua.com.br/textos/0/projeto-homenageia-lelia-gonzalez-pesquisadora-que-teorizou-sobre-o-pretugues-346139-1.asp. Acesso em: 22 nov. 2015.

RATTS, Alex e RIOS, Flávia. Lélia Gonzalez: Retratos do Brasil negro. São Paulo: Selo Negro, 2010.

RATTS, Alex. As amefricanas: mulheres negras e feminismo na trajetória de Lélia Gonzalez. Fazendo Gênero 9, Diásporas, Diversidades, Deslocamentos, 23 a 26 de agosto de 2010. Disponível em: http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/ anais/1278274787_ARQUIVO_Asamefricanas.pdf. Acesso em: 22 nov. 2015.

SANTOS, Joel Rufino dos. O movimento negro e a crise brasileira. In: Revista Política e Administração, n. 2, Rio de Janeiro: FESP, 1985, p. 298.

SEED - SECRETARIA DE EDUCAÇÃO DO PARANÁ. América Central Insular. Dia a Dia Educação. Disponível em: http://www.geografia.seed.pr.gov.br/modules /galeria/detalhe.php?foto=1530&evento=5. Acesso em: 22 nov. 2015.

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BENDITA ESCREVIVÊNCIA!

CONCEIÇÃO EVARISTO A SERVIÇO DA EDIFICAÇÃO DA LITERATURA NEGRA BRASILEIRA

RESUMO

Levando-se em consideração o projeto identitário da escritora negra - emergido pela construção social, abrangendo os recursos culturais e normas estabelecidas pelo senso comum e temporalidade relativa ao passado, ao presente e ao futuro – observa-se que a própria escritora se define em sua prática social discursiva. No universo literário, ocorre o vínculo indissociável entre sociedade, contexto, comportamento e atividades humanas, em que o escritor, invariavelmente, permeia sua escrita com singularidade única conforme a exposição emblemática de suas vivências. A partir desse esclarecimento, o trabalho em questão tem o objetivo de refletir sobre a construção poética de Conceição Evaristo quando esta faz da escrevivência uma particularidade significativa na composição do universo ficcional que a legitima, principalmente, como uma voz negra acadêmica e, sobretudo, comprometida com a edificação da literatura negra brasileira. Nesse sentido, enriquece com suas autorias a discussão a respeito das relações raciais, fortalecendo, assim, a resistência cultural dos afrodescendentes que passam, na escritura dela, de objeto a sujeito do discurso. É pertinente observar também, na voz poética de Conceição Evaristo, a construção de um movimento de resgate da ancestralidade em busca dos fragmentos de vida que dão conta da composição da identidade que a representa. O procedimento metodológico para esta pesquisa consiste em leitura, discussão e análise de obras de autores afro-brasileiros a partir de teorias dos estudos culturais e críticos que se debruçaram sobre o tema, com a finalidade de orientar professores da rede pública e outros educadores interessados em trabalhar nesse sentido, procurando sempre instrumentalizar a ação pedagógica, possibilitando a existência de uma educação comprometida com a diversidade racial e cultural do País.

Palavras-chave: Universos literários; Fragmentos de vida; Literatura afro-brasileira.

INTRODUÇÃO

Antes de detalhar os elementos norteadores desta investigação, entendemos ser necessário um rápido retrospecto da construção desse objeto de pesquisa. Importante é assinalar o nosso próprio processo de conversão de literatas para os temas da cultura e as motivações que nos levaram a empreender esta viagem pelo discurso das acadêmicas negras, invadindo território palmilhado preferencialmente pelos sociólogos da cultura. Nesse processo, vários temas foram se apresentando e a questão dessas intelectuais, a princípio só sonhada, emergiu vigorosamente. Foi como se uma porta se abrisse, desvelando um mundo de luz, cores e formas e descortinasse uma variedade de escritoras, temas e questões, ligadas tanto ao espaço restrito da literatura como aos outros aspectos do mundo cultural, social e político.

Tendo consciência de que o recorte a que submetemos tal investigação não se restringia apenas ao universo do preconceito racial, pressupomos que estudar as trajetórias das intelectuais negras, em seus vínculos de classe e inserções em correntes de pensamentos era condição fundamental para compreender como essas personagens constituíam-se como geração. E mais, o quê, por que e como produziam os mecanismos de disseminação de suas obras e se tais conteúdos estariam contribuindo, ainda que indiretamente, para construção de uma identidade afro-brasileira. Logo, tal escolha impunha trabalhar teoricamente questões como "modernidade", "posição e situação de classe" dessas personagens e "campo" a que se vinculam, articuladas às principais discussões no terreno do pensamento social brasileiro.

O estudo sobre a produção intelectual tem sido preocupação em diversas áreas do conhecimento. No Brasil, historiadores, cientistas políticos e sociólogos buscam uma maior compreensão da produção intelectual em si e das relações entre esses autores e a sociedade mais ampla – o mundo político, com os diversos grupos e frações de classe, posições de classe etc. –, bem como as possíveis interpretações que dão à identidade nacional.

Os intelectuais cumprem tal papel ao realizarem, pela interpretação da realidade, a mediação simbólica entre os fenômenos popular (plural) e nacional, ligando o particular e o universal. Dessa maneira, "... identidade é o resultado das relações apreendidas por cada autor", segundo Ortiz (1994, p. 139), a partir de sua forma de inserção no mundo e sua visão particular da realidade.

Partimos do pressuposto de que a literatura negra sobre uma fatia da qual nos propusemos dialogar neste texto, atentando para gênero ou tendência, é considerada aqui como manifestação das lutas que são travadas no interior do campo intelectual, literário no sentido estrito, pela busca do capital de reconhecimento e de legitimidade, vinculadas às questões do contexto histórico-social em que se inserem. A literatura afro-brasileira merece, portanto, ser avaliada como um dos elementos constitutivos do campo literário brasileiro, não como uma literatura “menor” (denominação desrespeitosa a que vem se submetendo), tendo como lente a leitura filosófica e sociológica como suporte para a base literária, fornecida pelos textos em análise. Nesse sentido, foram utilizados os seguintes pressupostos metodológicos: leituras específicas e discussões procedentes, seguidas de orientação dos professores da rede pública e de outros educadores interessados em trabalhar nesse sentido, procurando sempre instrumentalizar a ação pedagógica, possibilitando a existência de uma educação comprometida com a diversidade racial e cultural do País.

Ora, sempre se considerou a imagem uma espécie de “duplo” de alguma outra coisa preexistente, um simples reflexo desta coisa. Desde Platão, pelo menos, a imagem carrega consigo o estigma da mimese e parece condenada a cumprir o destino simbólico do espelho, “refletindo” um mundo que a antecede e que existe à sua revelia. Seria de se perguntar se esse pressuposto especular ainda se sustenta na contemporaneidade. E a resposta não parece ser algo simples, uma vez que pressupõe a complexidade própria da existência humana e, por conseguinte, a elaboração da cultura.

A literatura, como um recorte dessa cultura elaborada pelo agir humano, tem sido pensada e discutida com toda a complexidade que a pressupõe, mas que exige uma limitação própria do alcance de cada um dos inúmeros recortes feitos pelo homem na tentativa de compreender seu próprio fazer. Ser, ao mesmo tempo, um sujeito consciente e alguém a ser conhecido pode ser a explicação para tanta complexidade, própria desse par empírico-transcendental[5].

Gilles Deleuze, no ensaio teórico A Literatura e a Vida, texto presente na obra Crítica e Clínica3, orienta seus leitores para uma abordagem da obra artística mais livre das amarras que a prendem a um sujeito que a determina. Na abertura do texto, propõe um alargamento para a definição da escrita que, segundo ele, está muito longe de impor uma forma a uma matéria vivida, pois não é atributo de um escritor escrever sobre suas próprias neuroses. “A neurose, a psicose não são passagens de vida”, afirma Gilles Deleuze[6]. São interrupções, impedimentos desse processo. Por isso, o escritor não escreve porque está doente. Escreve sobre a doença, podendo curar a si e aos outros. O escritor é aquele que por sua sensibilidade maior é capaz de suportar, mesmo através das vidas e das psicologias das várias personagens que cria o peso dos problemas, dos desafios, das alegrias e das frustrações evidenciadas pelos outros. É aquele que tem uma audição mais ampla que lhe possibilita escutar o outro. É aquele que possui olhos atentos para ver campos distantes de sua retina. Nesta relação estará mais para o médico do que para o paciente. Esta metáfora é usada por Gilles Deleuze para desatrelar a vinculação estreita da subjetividade máxima atribuída ao escritor de determinada obra literária à sua escritura.

Para maior compreensão de tudo isso, Conceição Evaristo registra em Insubmissas lágrimas de mulheres:

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[5] Expressão utilizada por Foucault, na obra FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

[6] DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 1997, p. 13.

Gosto de ouvir, mas não sei se sou hábil conselheira. Ouço muito. Da voz outra, faço a minha, as histórias também. E, no quase gozo da escuta, seco os olhos. Não os meus, mas de quem conta. E, quando de mim uma lágrima se faz mais rápida do que o gesto de minha mão a correr sobre o meu próprio rosto, deixo o choro viver. E, depois confesso a quem me conta que emocionada estou por uma história que nunca ouvi e nunca imaginei para nenhuma personagem encarnar. Portanto, estas histórias não são totalmente minhas, mas quase que me pertencem, na medida em que, às vezes, se (con) fundem com as minhas. Invento? Sim, invento sem o menor pudor. Então as histórias não são inventadas? Mesmo as reais, quando são contadas. Desafio alguém a relatar fielmente algo que aconteceu. Entre o acontecimento e a narração do fato, alguma coisa se perde e por isso se acrescenta. O real vivido fica comprometido. E, quando se escreve, o comprometimento (ou o não comprometimento) entre o vivido e o escrito aprofunda mais o fosso. Entretanto, afirmo que, ao registrar estas histórias, continuo no premeditado ato de traçar uma escrevivência. (EVARISTO, 2011, p.10)

Gilles Deleuze afirma também que “a literatura só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa que nos destitui do poder de dizer Eu”[7]. O que pode ser comprovado no discurso de Miriam Alves:

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[7] Idem.

A produção das mulheres negras é relevante, pois propõe a descoberta de nossa vivência e condição que não estão presentes nas definições dominantes de realidade e das pesquisas históricas. Partindo de outro olhar, debatendo contra as amarras da linguagem, as mordaças ideológicas e as imposições históricas, propicia uma reflexão revelando a face de um Brasilafro feminino, diferente do que se padronizou, humanizando esta mulher negra, imprimindo um rosto, um corpo e um sentir mulher com características próprias (Alves, 2010, p.67).

As ponderações do filósofo, aliás, sobre a escrita estão ao lado do devir, do deslocamento, do inacabamento que um texto proporciona aos que dele se aproximam em grande número e de várias maneiras. Em A Literatura e a Vida, Gilles Deleuze registra essa complexidade da escrita que não cessa de dizer nunca o que tem a dizer, que não é finito o seu campo de atuação, que faz transbordar o vivido e o vivível. Isso vai ao encontro das palavras de Conceição Evaristo:

[...] Ora, se a literatura afro-brasileira, como se tem apresentado em algumas discussões, se atualiza e se identifica a partir do ponto de vista do texto, a partir da perspectiva da escrita que se realizaria sob a ótica de um olhar negro conferido à escritura, pergunto: o sujeito autoral da escrita – aquele que cria o texto – é isento de qualquer participação nesse mesmo texto? O texto nasce de quem? Explicando melhor: a autonomia da literatura afro-brasileira em relação ao sujeito autor/a é relativa, e muito. O ponto de vista que atravessa o texto e que o texto sustenta é gerado por alguém. Alguém que é o sujeito autoral, criador/a da obra, o sujeito da criação do texto. E, nesse sentido, afirmo que, quando escrevo, sou eu, Conceição Evaristo, eu-sujeito a criar um texto e que não me desvencilho de minha condição de cidadã brasileira, negra, mulher, viúva, professora, oriunda das classes populares, mãe de uma especial menina, Ainá etc., condições essas que influenciam na criação de personagens, enredo ou opções de linguagem a partir de uma história, de uma experiência pessoal que é intransferível (Evaristo, 2006, p.115).

Nessa mesma esteira de reflexão é possível inferir que pela literatura, a personagem de ficção também conquista seu devir, porque ao mesmo tempo em que traz traços marcadamente individualizados, sabemos que essa “aparente pessoa” pode superá-los, tornando-se, pela técnica narrativa, pelos recursos da ficção, além do estritamente pessoal. O ser ficcional permite o transbordamento de si mesmo, na medida em que é lido por um número elevado de leitores que o imaginam, considerando apenas o seu tipo físico, de maneiras diversas. A atenção de Gilles Deleuze se move no sentido de mostrar que a literatura trabalha minando o campo do possessivo a que ficamos atrelados e para o qual tudo parece convergir em nossa vida.

CONCEIÇÃO EVARISTO A SERVIÇO DA EDIFICAÇÃO DA LITERATURA NEGRA BRASILEIRA

A partir dessas premissas, faz-se necessário agora refletirmos sobre Conceição Evaristo, da qual emerge, nos discursos que registra, peculiaridades demarcadas pelo conflito enfrentado na busca de uma independência acadêmica, literária, provando, a princípio, a hipótese da impossibilidade de separação entre vivência e discurso da escritora negra acadêmica.

 Para início da demanda temos Conceição Evaristo por Conceição Evaristo:

[...] Eu sou uma escritora brasileira, mas não somente.  A minha condição de brasileira agrega outras identidades que me diferenciam: a de mulher, a de negra, a de oriundas das classes populares e outras ainda, condições que marcam, que orientam minha escrita, consciente e inconscientemente. Nesse sentido, não tenho receio algum em não afirmar a existência de uma literatura afro-brasileira, como ainda de me encaixar no grupo de autoras/res que criam um texto afro-brasileiro. E ainda asseguro a existência de um texto feminino negro, ou afro-brasileiro, como queiram. O meu texto se apresenta sob a perspectiva, sob o ponto de vista de uma mulher negra inserida na sociedade brasileira. [...] Asseguro que minha condição étnica e de gênero, ainda acrescida de outras marcas identitárias, me permite uma experiência diferenciada do homem branco da mulher branca e mesmo do homem negro. A minha experiência pessoal influencia a minha escrita conduzindo o ponto de vista, a perspectiva, o olhar que habita em meu texto (Evaristo, 2006, p.115).

Para esse trabalho de feitura ou até mesmo de artesania da literatura negra de Conceição Evaristo, Maria Nazareth Soares Fonseca (2002, s/p) se posiciona:

Conceição Evaristo trabalha de forma contundente o universo feminino recolhendo, em poemas, contos e romances, as lágrimas e as “molhadas esperanças”, material que fecunda a sua poética. A arte de escrever torna-se a ferramenta utilizada para recompor o vasto painel de experiências de pobreza e de observação atenciosa dos fragmentos de memória com que costura seus textos. A memória costurada pelos textos expõe-se em versos que recolhem versos e palavras de mulheres que conviveram com a poesia que pode ser encontrada mesmo na dureza da vida. Vida e arte mostram-se no poema “De mãe”:

Foi mãe que me fez sentir
as flores amassadas
debaixo das pedras
os corpos vazios
rente às calçadas
e me ensinou, insisto, foi ela
a fazer da palavra
artifício
arte e ofício
do meu canto
da minha fala.

Ora, o texto de Conceição Evaristo é contemplado pelo resgate de lembranças, como ela própria assinala que “A literatura negra é um lugar de memória”, em sua dissertação de Mestrado. Longe de ser uma memória qualquer é sempre um dessilenciamento de vozes invisíveis, por isso mesmo interrompidas.

É de real importância considerar também que a produção literária de Conceição Evaristo firma-se num engajamento lírico e busca recuperar a identidade negra e da ancestralidade que a constitui por meio da recuperação de narrativas de vidas ignoradas, promovendo uma situação de denúncia racial e de gênero. É essencial comprovar no poema Meia Lágrima, da poeta em questão.

Não,
a água não me escorre
entre os dedos,
tenho as mãos em concha
e no côncavo de minhas palmas
meia gota me basta.
Das lágrimas em meus olhos secos,
basta o meio tom do soluço
para dizer o pranto inteiro.

As últimas palavras (por enquanto) sobre Conceição Evaristo ficam por conta de Maria Consuelo Cunha Campos e de Eduardo de Assis Duarte:

Com sua “escrevivência” - termo com que costuma demarcar sua produção textual – Conceição Evaristo articula seus projetos literário e existencial: a uma longa persistente militância social, étnica e de gênero agrega-se a atuação acadêmica e a criação poética e narrativa. Põe em cena, sob uma perspectiva feminina a afro-identificada, problemas do cotidiano de mulheres negras, conectando sua literatura às raízes étnicas. Centrados na temática afro-brasileira, seus escritos consubstanciam sua resistência ao sexismo, ao racismo e aos demais preconceitos e formas correlatas de exclusão. Mas sem perder a ternura jamais (DUARTE, 2011, p. 32).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como desfecho – ainda parcial em face da necessidade de aprofundamento e comparação analítica com outras escritoras negras – pode-se inferir a afirmativa sensitiva de Marcel Proust: “Os belos livros estão escritos numa espécie de língua estrangeira”.  Nessa esfera literária se encontra um verdadeiro quilombo, com inúmeras vozes tingidas por diversas matizes e unidas num único clamor: o desejo de ser reconhecido, de poder sentir o mundo a sua volta, de administrar seus pensamentos sem correntes e, sobretudo, de ser aceito como verdadeiramente o é.

A valoração desse discurso se deve a dificuldade de se escrever por um povo que não pode escrever, a quem não se concede a voz, escreve-se por “um povo que falta”. Não se trata, no entanto, de se inventar uma nova língua, um dialeto, mas, novamente Gilles Deleuze insiste na possibilidade de um “devir-outro” da língua, que inaugura um leque de desdobramentos crítico-reflexivo sobre o literário.

Em consequência, o sentido só existe na proposição, abrangendo tanto coisas quanto palavras, porque o acontecimento da superfície acontece às coisas e subsiste nas palavras, na linguagem, na superfície dos incorpóreos. O sentido é pululante, deslocando-se por entre as coisas e as palavras. Ele pode ser atributo do estado das coisas, um extra-ser. Ele pode ser expresso pela proposição, mas é um inexistente. Ele é presente contínuo, mas também não é presente nunca, sendo passado e futuro, ao mesmo tempo.

Conceição Evaristo demonstra em seus discursos um sentido que deve ser buscado. São inequívocos os excessos de sentidos, articulando ideias, comunicando sentimentos e emoções, coexistindo e ramificando-se em cada frase e em cada estrofe. Seus devires se arrastam entre um e outro, sempre em fuga, ansiando por um devir existencialista em velocidade e intensidade referenciais diferentes conforme as próprias experiências vivenciais.

A arte ou a literatura realizam-se como a expressão da visão de mundo humana e, portanto, nada mais é que aquilo que está contido na base material humana e que se exterioriza numa mescla de objetividade/subjetividade, trabalhados pela consciência histórica do ser social. Dessa forma, herdada a cultura, extrai-se da arte aquilo que cada momento da humanidade busca para si.

REFERÊNCIAS

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____________. Palavras de Miriam Alves. Blogspot. Disponível em: http://escritoramiriamalves.blogspot.com.br/. Acesso em: 10 ago. 2014.

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BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In: ORTIZ, Renato (org.). Pierre Bourdieu – Sociologia. São Paulo: Ática, 1983. p. 46-81.

CAMPOS, Maria Consuelo Cunha e DUARTE, Eduardo Assis. “Conceição Evaristo”. In: DUARTE, Eduardo Assis. (org.) Literatura e afrodescendência no Brasil. v. 2. Belo Horizonte: UFMG, 2011.

CULLER, Jonathan. Teoria Literária: uma introdução. São Paulo: BECA, 1999.

DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.

DUARTE, Eduardo Assis. O Bildungsroman afro-brasileiro de Conceição Evaristo. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid =S0104-026X2006000100017. Acesso em: 13 ago. 2014.

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

EVARISTO, Conceição. Becos da memória. Belo Horizonte: Mazza, 2006.

___________________. Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade. Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em Letras) – Departamento de Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1996.

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FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

LOPES, Ney. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro, 2004.

OLIVEIRA, Eduardo David. Filosofia da ancestralidade: corpo de mito na filosofia da educação brasileira. Curitiba: Gráfica Popular, 2007.

OLIVEIRA, Luiz Henrique Silva de. "Escrevivência" em Becos da memória, de Conceição Evaristo. Rev. Estud. Fem.,  Florianópolis ,  v. 17, n. 2, Ago.  2009.   Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2009000200019&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 10 ago. 2014. 

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SOUZA, Graciethe da Silva de. Um olhar a partir de vozes historicamente silenciadas. III EBE CULT – Encontro Baiano de Estudos em Cultura. Disponível em: http://www.ufrb.edu.br/ebecult/wp-content/uploads/2012/05/Um-olhar-a-partir-de-vozes-historicamente-silenciadas. Acesso em: 16 jun. 2018.

 

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ENSAIO INICIAL SOBRE A EXPERIÊNCIA DA CONCHA EXPOSTA NA ESCREVIVÊNCIA DAS ESCRITORAS AFRO-BRASILEIRAS

MARIA FIRMINO DOS REIS, CAROLINA DE JESUS E CONCEIÇÃO EVARISTO

RESUMO

Neste artigo será exposta uma análise inicial do discurso literário das escritoras Maria Firmino dos Reis, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, as quais transbordaram em prosa suas emoções frente ao preconceito e intransigência de uma sociedade patriarcal baseada no segregacionismo. Cada escritor literário demonstra ao elaborar o seu texto particularidades da sua vida em sociedade, seja por meio ficcional ou não, sua visão de mundo e do próprio eu inseridos no contexto social ou de forma particular. Assim, o objetivo deste ensaio será o de observar como as escritoras se posicionaram em diferentes contextos de espaço-tempo, Maria Firmino dos Reis no final do século XIX, Carolina de Jesus na metade do século XX e Conceição Evaristo no final do século XX e início do século XXI. A construção literária dessas escritoras abrangem três momentos distintos, a primeira em plena fase abolicionista, a segunda no clamor do feminismo e a terceira no boom informacional onde há o clamor da negritude em uma sociedade faminta de justiça social. No decorrer do artigo é possível observar como as escritoras lidaram com a sua negritude em uma sociedade racista, demonstrando ainda, a interconexão da produção literária e de como as escritoras conseguiram expor suas emoções reprimidas ou não, dentro de um universo onde somente quem está disposto a entender, conseguirá alcançar os seus sentimentos encarcerados em uma concha sem a qual, seria impossível sobreviver. Analisando a questão da mestiçagem na produção literária das escritoras, vê-se que todas se identificam como “negras” e não como mestiças, apesar das três o serem. Em decorrência, a própria escrevivência colocada em prosa, pelas escritoras, não aborda essa questão. Ao final se observa que apesar do período temporal de três séculos, o discurso literário continua de militância em busca da justiça e igualdade sociais.

Palavras-chave: Literatura Afrobrasileira; Escrevivência; Espaço-tempo social e literário.

INTRODUÇÃO

A produção literária de um escritor negro comumente expressa a sua visão de mundo, experiências vivenciadas e em dado momento o texto é colorido com uma ideia, um ideal, uma causa, batalhando em prol não de si mesmo, mas sim, de uma coletividade, tornando-se uma voz no meio do silêncio da injustiça social. E assim, conclama entre toda a sociedade militantes a fim de destruir os paradigmas deixados para trás pelos colonialistas europeus.

A escrevivência, termo cunhado por Conceição Evaristo, expressa exatamente essa característica do discurso literário da escritora afro-brasileira.

A nossa “escrevivência” conta as nossas histórias a partir das nossas perspectivas, é uma escrita que se dá colada à nossa vivência, seja particular ou coletiva, justamente para acordar os da Casa Grande. [A escrevivência] seria escrever a escrita dessa vivência de mulher negra na sociedade brasileira. Eu acho muito difícil a subjetividade de qualquer escritor ou escritora não contaminar a sua escrita. De certa forma, todos fazem uma escrevivência, a partir da escolha temática, do vocabulário que se usa, do enredo a partir de suas vivências e opções. A minha escrevivência e a escrevivência de autoria de mulheres negras se dá contaminada pela nossa condição de mulher negra na sociedade brasileira.   Toda minha escrita é contaminada por essa condição. É isso que formata e sustenta o que estou chamando de escrevivência. (LIMA, 2017)

Compreender e expor como essa “escrevivência” venceu paradigmas sociais em épocas diferentes, o presente artigo se propõe à análise do discurso literário de três escritoras afro-brasileiras: Maria Firmino dos Reis, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo. A escolha dessas três notáveis escritoras se dá pela notoriedade que conquistaram pela sua produção literária, abrangendo os séculos XIX, XX e XXI.

Analisar a escrevivência na produção textual dessas escritoras é importante para observar se houve alguma diferença, devido ao espaço temporal vivenciado, na visão de mundo de cada uma. Afinal, são mais de 100 anos de contato com uma sociedade que se encontra em constante transformação pela luta dos direitos de igualdade não só da raça negra, como também, da mulher brasileira.

A construção do artigo envolve o método de revisão bibliográfica trazendo mediante pesquisa em documentos científicos, dados que sustentam a hipótese inicial de que apesar do tempo ainda há muito a se alcançar no que se refere à igualdade de direitos, demonstrado pela escrevivência apresentada nos textos das escritoras negras pesquisadas.

A PRIMEIRA ROMANCISTA BRASILEIRA: MARIA FIRMINO DOS REIS

Maria Firmino dos Reis nasce no Maranhão em 1822, filha da união de uma mulher branca com um negro, provavelmente escravo, pois a abolição só ocorreu em 1888. Apesar da ilegitimidade de seu pai, Maria Firmino teve uma educação branca, conviveu como igual dentro de uma “Casa Grande”, tornando-se professora. Seu primeiro contato com a literatura se deu em 1830 quando se mudou para a casa de uma tia mais abastada e entrando em contato com parentes famosos do meio cultural como Sotero dos Reis, gramático. A partir desse contato inicial iniciou seu autodidatismo e o gosto pela literatura emergindo em 1859, o seu primeiro romance “Úrsula” cuja essência evocava indiscutivelmente uma crítica à escravidão.

Importa salientar que uma mulher negra, ilegítima, em plena sociedade escravagista, torna-se professora e militante da causa abolicionista em 1847 e se torna a primeira romancista brasileira em 1859. Inegável portanto, é o talento dessa mulher guerreira que conseguiu se sobressair em uma sociedade, cujo costume era escravista, por sua qualidade literária.

Diferente dos escritos de mulheres da época, o romance não era “de perfumaria”, nem algo sem profundidade. Ao contrário: foi o primeiro livro brasileiro a se posicionar contra a escravidão e a partir do ponto de vista de escravos – antes do famoso poema Navio negreiro, de Castro Alves (1869), e de A Escrava Isaura (1875), de Bernardo Guimarães. (D’ANGELO, 2017)

O romance Úrsula conta a estória de uma mulher branca, sua vida em sociedade e o relacionamento dos escravos com os senhores. A princípio, uma mulher negra contar a história de uma branca é contraditório, principalmente no que se refere à questão de escrevivência, mas não é esse o caso de Maria Firmino dos Reis, sua mãe é branca e assim, sua vivência, criação e educação, deu-se junto à Casa Grande e não na senzala. De fato, Maria Firmino é única, sobressaindo-se como mulher pela sua intelectualidade, como demonstra o próprio prólogo do livro Úrsula:

Mesquinho e humilde livro é esse que vos apresento, leitor. Sei que passará entre o indiferentismo glacial de uns e o riso mofador de outros, e ainda assim o dou a lume. Não é a vaidade de adquirir nome que me cega, nem o amor-próprio de autor. Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados, que aconselham, que discutem e que corrigem, com uma instrução misérrima, apenas conhecendo a língua de seus pais, e pouco lida, o seu cabedal intelectual é quase nulo. (REIS, 2017, p.1)

As premissas inclusas no texto acima indicam a manipulação do leitor, homem cujo poder patriarcal transcende o valor da vida humana, enaltece um ego em ascendência que precisa ser enganado para o alcance do clamor da escritora. Praticamente diz: “Leia-me, não chego aos seus pés, mas o meu discurso expressa o conhecimento que adquiri com vocês homens, a raça superior”.

O romance Úrsula demonstra a condição da mulher, independente da raça ou cor, o quanto era pressionada e “escravizada” pelo poder patriarcal, não possuindo desejos ou anseios, apenas possuindo valor como troca por títulos na sociedade imperialista.

— Sim, senhor — tornou-lhe a mãe de Úrsula — e um desvelado irmão  foi ele. Conhecei-lo talvez pela sua reputação de fereza de ânimo; mas esse homem tão implacável, como o vedes, era um terno e carinhoso irmão. Amou-me na infância com tanto extremo e carinho que o enobreciam aos olhos de meus pais, que o adoravam, e depois que ambos caíram no sepulcro ele continuou sua fraternal ternura para comigo. Mais tarde, um amor irresistível levou-me a desposar um homem, que meu irmão no seu orgulho julgou inferior a nós pelo nascimento e pela fortuna. Chamava-se Paulo B.

(...) Paulo B. não soube compreender a grandeza de meu amor, cumulou-me de desgostos e de aflições domésticas, desrespeitou seus deveres conjugais, e sacrificou minha fortuna em favor de suas loucas paixões. (...)E ele teria sido bom; sua regeneração tornar-se-ia completa, se o ferro do assassino lhe não tivesse cortado em meio à existência! (grifo nosso) (REIS, 2017, p. 61-62)

Maria Firmino apresenta as características da mulher do século XIX, submissa ao homem, independente do vínculo sanguíneo ou matrimonial. E o que mais surpreende é que essa mulher defendia e justificava as atrocidades cometidas pelos seus algozes.

Além da questão da repressão ao sexo feminino, Maria Firmino dos Reis, inova expondo o negro, escravo, como ser humano, detentor de sentimentos e de índole pura e dócil. A saudade da terra natal, expressa pela personagem Preta Suzana, demonstra claramente a emoção sentida por aquela mulher ao ser retirada abruptamente de seu País.

– Sim, para que estas lágrimas?!... Dizes bem! Elas são inúteis, meu Deus; mas é um tributo de saudade, que não posso deixar de render a tudo quanto me foi caro! Liberdade! Liberdade... ah! eu a gozei na minha mocidade! Túlio, meu filho, ninguém a gozou mais ampla, não houve mulher alguma mais ditosa do que eu. Tranquila no seio da felicidade, via despontar o sol rutilante e ardente do meu país, e louca de prazer a essa hora matinal, em que tudo se respira amor, eu corria às descarnadas e arenosas praias, e aí com minhas jovens companheiras, brincando alegres, com o sorriso nos lábios, a paz no coração, divagávamos em busca das mil conchinhas, que bordam as brancas areias daquelas vastas praias. (REIS, 2017, p. 70-71).

A crítica direta à escravidão é demonstrada por Maria Firmino dos Reis em toda a sua produção literária, não apenas no romance Úsula. O conto denominado “A escrava”, publicado em 1887 pela Revista Maranhense, fala sobre uma mulher branca, dama da sociedade, que milita contra a escravidão em uma reunião social:

Por qualquer modo que encaremos a escravidão, ela é, e sempre será um grande mal. Dela a decadência do comércio, porque o comércio e a lavoura caminham de mãos dadas, e o escravo não pode fazer florescer a lavoura, porque o seu trabalho é forçado. Ele não tem futuro; o seu trabalho não é indenizado. Ainda dela nos vem o opróbrio, a vergonha, porque de fronte altiva e desassombrada não podemos encarar as nações livres; por isso que o estigma da escravidão, pelo cruzamento das raças, estampa-se na fronte de todos nós. Embalde procurará um dentre nós convencer ao estrangeiro que em suas veias não gira uma só gota de sangue escravo. (...)

Um homem apeou-se à porta do Engenho, onde juntos trabalhavam meus pobres filhos – era um traficante de carne humana. Ente abjeto, e sem coração! (...) Que espetáculo! Tinham metido adentro a porta da minha pobre casinha, e nela penetrado o meu senhor, o feitor, e o infame traficante. Ele e o feitor arrastavam, sem coração, os filhos que se abraçavam a sua mãe. (grifo nosso). (REIS, apud SILVA, 2009, p. 15-16).

Falar abertamente sobre a causa abolicionista, expondo o seu caráter mercenário e desumano, não era comum à mulher, muito menos à mulher negra do século XIX. Mais uma vez é importante salientar que a vida de Maria Firmino dos Reis envolve uma história de luta, não contra o branco, mas contra um ideário construído pela economia colonial imperialista da época. A luta era contra a negação da miscigenação racial: “Embalde procurará um dentre nós convencer ao estrangeiro que em suas veias não gira uma só gota de sangue escravo”.

Por mais que seja sugerido um processo de embranquecimento de Maria Firmino dos Reis, devido a sua vivencia na Casa Grande, inegavelmente esta valorosa mulher afro-brasileira tinha orgulho de sua cor, não esquecendo suas origens, ao mesmo tempo em que apresenta o escravo como ser humano, educando e preparando a sociedade brasileira para transcender o modelo imperial escravagista, onde o negro era considerado menos que um animal, apenas uma ferramenta de trabalho substituível.

Mediante a esta superficial análise sobre a produção literária de Maria Firmino dos Reis, observa-se a escrevivência da autora apresentada nos temas a cultura branca, a escravidão e o levante abolicionista. Ora, Maria Firmino dos Reis foi criada como branca, mas não era branca, e em nenhum momento sua família branca buscou seu embranquecimento, ao contrário, a escritora vivia em um período de crítica maciça da escravatura, ocorria um levante abolicionista levando a debates entre a realeza, os intelectuais, os senhores feudais e a própria sociedade brasileira. Efervescia em todo o Brasil a ânsia por liberdade, seja esta dos escravos, como também a libertação do império, da opressão e repressão política e social.

DESTRUINDO BARREIRAS SOCIAIS: CAROLINA MARIA DE JESUS

A escritora Carolina Maria de Jesus nasce no início do século XX, em 14 de março de 1914, em Minas Gerais, na cidade de Sacramento. Filha de negros recém libertos e oriundos do processo de migração para áreas de agropecuária recém-criadas. Alguns autores, como Palmares (2016), indicam uma migração da cidade do Desemboque para Sacramento em face da alteração da economia extrativista do ouro para a agropecuária.

Carolina Maria de Jesus teve acesso a uma parca educação, em colégio espírita assistencialista, aprendendo o básico da leitura e da escrita, o qual foi suficiente para aquecer o seu coração, nascendo uma paixão pela literatura que jamais desapareceu.

No início de 1923, foi matriculada no colégio Allan Kardec – primeira escola espírita do Brasil –, na qual crianças pobres eram mantidas por pessoas influentes da sociedade. Lá estudou por dois anos, sustentada pela Sra. Maria Leite Monteiro de Barros, para quem a mãe de Carolina trabalhava como lavadeira. (LITERAFRO, 2018)

Em 1947, Carolina Maria de Jesus, muda-se para São Paulo visando ter acesso a melhores oportunidades de trabalho. Acaba fixando residência na favela do Canindé, iniciando sua vida profissional como catadora de recicláveis. Foi nessa atividade, de vasculhar o lixo para encontrar materiais para o reaproveitamento, que Carolina Maria de Jesus aprimora o seu conhecimento com livros, revistas e cadernos que encontrava na rua rotina diária de recicladora.  (PALMARES, 2016)

Leitora voraz de livros e de tudo o que lhe caía nas mãos, logo tomou o hábito de escrever. E assim iniciou sua trajetória de memorialista passando a registrar o cotidiano do “quarto de despejo” da capital nos cadernos que recolhia do lixo e que se transformariam mais tarde nos “diários de uma favelada”. (LITERAFRO, 2018)

Em 1960 o jornalista Audálio Dantas lança, a partir dos diários de Carolina Maria de Jesus, a obra “Quarto de Despejo – Diário de uma favelada”, com uma tiragem inicial de dez mil exemplares, os quais se esgotaram na primeira semana. Esse livro foi traduzido em 13 idiomas e vendido em mais de 40 países.

Essa literatura documentária, pela narrativa feminina, em contestação, tal como foi conhecida e nomeada pelo jornalismo de denúncia dos anos 50-60, é considerada uma obra atual, pois a temática dá conta de problemas existentes até hoje nas grandes cidades. (PALMARES, 2016)

Carolina Maria de Jesus teve três filhos e apesar de todas as dificuldades conseguiu uma vasta produção, “mais de 5 mil páginas, encontram-se 7 romances, 60 textos curtos, 100 poemas, 4 peças de teatro e 12 letras para marchas de carnaval”. (PALMARES, 2016)

Em vida Carolina Maria de Jesus publicou além do premiado Quarto do Despejo, mais três livros, Casa de Alvenaria (1961), Pedaços de Fome (1963), Provérbios (1963). Há ainda, uma publicação póstuma, Diário de Bitita (1982), editado inicialmente em Paris, sob o título Journal de Bitita, recebendo o título de “Um Brasil para brasileiros”. Em 1977, Carolina Maria de Jesus, falece em seu sítio, localizado na periferia de São Paulo, já esquecida pela imprensa e pelo seu público. (LITERAFRO, 2018)

Carolina nunca foi tratada como uma mulher inteligente e à frente do seu tempo”, lamenta Tom Farias. “O aspecto da pobreza, da favela, da falta de estudos chamou mais a atenção como produto midiático, de puro marketing. Causou também ‘ciumeira’ na ‘classe’ literária, muito elitizada: o boicote a Carolina foi feio, sem sentido, colonial e assustador. (BELÉM, 2018)

Como lamenta acima o jornalista Tom Farias, percebe-se que houve certo sensacionalismo no caso Carolina Maria de Jesus. Afinal, a escritora afro-brasileira favelada quebrava vários paradigmas que a sociedade brasileira ainda não estava disposta a abolir.

Entretanto, recentemente sua produção literária vem chamando a atenção da academia e das universidades, tornando-se objeto de estudos de literatura da chamada “escrita do eu”. (LITERAFRO, 2018)

Incautos são aqueles que anularam a inteligência e o conhecimento de Carolina Maria de Jesus. No poema Vidas é possível observar que a escritora, apesar de uma educação deficiente, possui um excepcional conhecimento de história:

Vidas
Nem sempre são ditosas
Vidas das pessoas famosas
Edgar Alan Poe morre na sarjeta
Na guilhotina Maria Antonieta
Luis de Camões teve que mendigar
Gonçalves Dias morre ao mar
Casimiro de Abreu morre tuberculoso
Tomaz Gonzaga, louco furioso
Getúlio para impedir outra revolução
Suicida-se com um tiro no coração
Santos Dumont inventor do avião
Que foi utilizado na revolução
Para ver o Brasil independente
Morre na forca nosso Tiradentes
Luís XVI, rei incidente
Morre tragicamente
Sócrates foi condenado a morrer
Ciente lhe obrigaram a beber
João Batista repreendia os transviados
Foi preso e decapitado
Abraão Lincoln abolindo a escravidão
Foi morto à traição
Euclides da Cunha escritor proeminente
Sua morte foi cruelmente
Joana D’Arc vendo a França oprimida
Defendendo-a pagou com a vida
Camilo Castelo Branco foi escritor
Ficou cego, suicidou-se
Kennedy desejava a integração
Reprovaria a segregação
Foi morto à bala
Na cidade de Dallas
Jesus Cristo não foi julgado
Foi chacinado e crucificado
Com requinte de perversidade
O pior crime da humanidade. (JESUS, 1996, p. 23-24)

No poema acima, Carolina Maria de Jesus, nada no mar histórico de escritores e políticos, todos marginalizados por defenderem mudanças no ideário hedonista humano, culminando com a maior injustiça da humanidade. Carolina Maria de Jesus possuía um leque altamente diversificado de conhecimento, talvez não letrado esteticamente, mas indubitavelmente abrangente.

Sobre a questão escravidão, igualmente Carolina Maria de Jesus, demonstra conhecimento histórico para expor a condição do negro no início do século XX.

A maioria dos negros eram analfabetos. Já haviam perdido a fé nos predominadores e em si próprios.

O tráfico de negros iniciou-se no ano de 1515. Terminou no ano de 1888. Os negros foram escravizados durante quase 400 anos.

Quando o negro envelhecia ia pedir esmola. Pedia esmola no campo. Os que podiam pedir esmolas na cidade eram só os mendigos oficializados. (...) (JESUS, 1986, p. 27)

(...) A escravidão era como cicatriz na alma do negro. Quando um negro dizia: – Eu sou livre!, ninguém acreditava e zombavam dele. (...)

(...) Se o negro passava cabisbaixo, o branco xingava!

­–  Negro, vagabundo! Eu não gosto desta raça! Eu tinha esta raça para o comércio.

Eu pensava: “Meu Deus! Quem foi que começou esta questão, foi o preto ou o branco? Quem procurou o preto? Se foi o branco quem procurou o preto, ele não tem o direito de reclamar. O negro não invadiu suas terras, foram eles que invadiram as terras dos negros.” Ninguém para me explicar. A minha mãe já estava saturada com as minhas perguntas. (JESUS, 1986, p. 59-60)

Carolina Maria de Jesus sabia que a escravidão no Brasil destruiu a autoestima do afrodescendente. Os negros se sentiam perdidos, longe de suas raízes e ainda sem nação. A sociedade brasileira, no ver de Carolina Maria de Jesus, ainda não considerava o negro cidadão brasileiro e por consequência, o negro vivia à margem.

A peculiar sabedoria de Carolina Maria de Jesus é com certeza, inata; a autora encontra na obviedade do simples as leis intrínsecas da vida humana, como pode ser observado no seu livro Provérbios:

O que pertence a Deus é dos homens. O que é dos homens é vendido ex.:

O ar que respiramos pertence a Deus. Nós respiramos o ar gratuitamente.

A terra que pisamos. A casa que o homem constrói, o automóvel, são vendidos.

Eis aí o comprovante, que Deus é superior aos homens.

Se o homem pudesse vender o sol, venderia o seu calor.

A lógica de Carolina Maria de Jesus é simples, clara e objetiva. Impossível de ser contradita. O primeiro paradigma quebrado por Carolina Maria de Jesus é: sabedoria não depende de dinheiro, status ou academia; portanto há sabedoria na pobreza e na simplicidade. E mesmo nadando contra a correnteza da ideologia branca, Carolina Maria de Jesus, segue o seu sonho: escrever.

Eu disse: o meu sonho é escrever!

Responde o branco: ela é louca.

O que as negras devem fazer....

É ir pro tanque lavar roupa. (JESUS, 1996, contra capa)

O branco, colocado como o antagonista no texto acima, na realidade se refere a uma cultura, um ideário elitista excludente do afrodescendente para Carolina Maria de Jesus.

Assim, como pode ser observado pela sintética biografia de Carolina Maria de Jesus sua experiência de vida evocava o negro, a pobreza e a marginalidade. Sua escrevivência, portanto, não poderia se exibir outro cenário.

Nós somos pobres, viemos para as margens do rio. As margens do rio são os lugares de lixo e dos marginais. Gente da favela é considerado marginais não mais se vê os corvos voando as margens do rio perto dos lixos. Os homens desempregados substituíram os corvos. (JESUS, 2001, p. 48)

A favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós os pobres, somos os trastes velhos.  (...) Escrevo a miséria e a vida infausta dos favelados (...)” (JESUS, 2001, p. 171, 173)

Ser negra não era o problema de Carolina Maria de Jesus, mas a fome, sim!  “Eu sou negra, a fome é amarela e dói muito.” (JESUS, 2001)

Que efeito surpreendente faz a comida no nosso organismo! Eu que antes de comer via o céu, as arvores, as aves tudo amarelo, depois que comi, tudo normalizou aos meus olhos.

A comida no estômago é como combustível nas máquinas. Passei a trabalhar mais depressa. Meu corpo deixou de pesar. (…) Eu tinha a impressão que eu deslizava no espaço. Comecei a sorrir como se eu estivesse presenciando um lindo espetáculo. E haverá espetáculo mais lindo do que ter o que comer? Parece que eu estava comendo pela primeira vez na minha vida (JESUS, 2001, p. 36).

(...) É quatro horas. Eu já fiz almoço - hoje foi almoço. Tinha arroz, feijão e reponho e linguiça. Quando eu faço quatro pratos penso que sou alguém. Quando vejo meus filhos comendo arroz e feijão, o alimento que não está no alcance do favelado, fico sorrindo a tôa. Como se eu estivesse assistindo um espetáculo deslumbrante (JESUS, 2001, p.44).

(...) E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome! (JESUS, 2001, p. 27).

A produção textual de Carolina Maria de Jesus é totalmente influenciada por sua vivência, a exposição ficcional da realidade é a sua temática ... esta é a sua escrevivência: a escravidão, a marginalização e a fome.

O SÉCULO XXI APRESENTA UM NOVO IDEÁRIO PARA O NEGRO? A LUTA CONTINUA EM CONCEIÇÃO EVARISTO...

A romancista, contista, poeta e doutora em literatura Conceição Evaristo nasce em 29 de novembro de 1946, em Minas Gerais, e é batizada como Maria da Conceição Evaristo de Brito. Oriunda de lar humilde, vive na favela da zona sul de Belo Horizonte com seus nove irmãos. Sua mãe incentiva desde cedo o gosto pela literatura, mesmo entrando tardiamente para o colégio, aos 12 anos de idade. Um desejo crescente nasce no coração da menina Conceição: a luta pela igualdade racial. Conceição fala que desde cedo não se conformava com a exclusão do negro “quando tinha entre 12 e 13 anos fui estudar em um colégio de aplicação, tinha normalmente, uns 43 alunos na turma sendo apenas dois negros. Eu queria entender o porquê daquilo acontecer”. (MARICÁ, 2017)

Para sobreviver, Conceição Evaristo atua como doméstica para sobreviver e bancar a sua educação, seguindo os passos de sua mãe e tias, todas profissionais domésticas:

Mãe lavadeira, tia lavadeira e ainda eficientes em todos os ramos dos serviços domésticos. Cozinhar, arrumar, passar, cuidar de crianças. Também eu, desde menina, aprendi a arte de cuidar do corpo do outro. Aos oito anos surgiu meu primeiro emprego doméstico e ao longo do tempo, outros foram acontecendo. Minha passagem pelas casas das patroas foi alternada por outras atividades, como levar crianças vizinhas para escola, já que eu levava os meus irmãos. O mesmo acontecia com os deveres de casa. Ao assistir os meninos de minha casa, eu estendia essa assistência às crianças da favela, o que me rendia também uns trocadinhos. Além disso, participava com minha mãe e tia, da lavagem, do apanhar e do entregar trouxas de roupas nas casas das patroas. Troquei também horas de tarefas domésticas nas casas de professores, por aulas particulares, por maior atenção na escola e principalmente pela possibilidade de ganhar livros, sempre didáticos, para mim, para minhas irmãs e irmãos. (LITERAFRO, 2018)

Em 1973 se muda para o Rio de Janeiro, é aprovada em um concurso público para atuar como educadora ao mesmo tempo em que adentra no curso de Magistério na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em consequência, abandona a profissão de doméstica. A partir de então, Conceição Evaristo não para de se aprimorar academicamente se formando em 1996 na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ) como Mestre em Literatura Brasileira. Em 2011 se forma em doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF) ao defender a tese Poemas Malungos – Cânticos Irmãos. (ITAÚ CULTURAL, 2017; LITERAFRO, 2018)

A partir da década de 1980 Conceição Evaristo começa a se engajar politicamente, militando em prol da afrobrasilidade, por meio de participação e publicação de artigos em revistas nacionais e internacionais. Graças a entrada ao Grupo Quilombhoje, em 1990, insere-se na vida literária com publicações de artigos, poesias e prosas, na série dos Cadernos Negros. A temática central da sua produção literária envolve a discriminação do trinômio discriminatório raça, gênero e classe. (ITAÚ CULTURAL, 2017)

Forte é a influência da sua ancestralidade em seus textos, devido principalmente a sua educação onde a história era passada oralmente, nas reuniões familiares. Segundo Conceição Evaristo sua infância foi numa época onde não havia televisão e portanto, contar histórias era a diversão da família. Essa influência é demonstrada no poema:

Vozes-Mulheres
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz da minha filha
recorre todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala a ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade. (NASCIMENTO, 2008, p.59)

Inegável é a mensagem exposta no poema acima, uma luta em prol da justiça social, da igualdade e da liberdade do afrodescendente. Afinal, como salientou Carolina Maria de Jesus, “a escravidão é uma cicatriz na alma do negro” e essa cicatriz, em pleno século XXI ainda está aberta, fazendo com que o afrodescendente sofra pela carga emotiva que carrega a história de sua ascendência. Conceição Evaristo tem a sua militância exposta abertamente, demonstrando onde dói e porquê dói.

Conseguir algum dinheiro com os restos dos ricos, lixos depositados nos latões sobre os muros ou nas calçadas, foi um modo de sobrevivência também experimentado por nós. E no final da década de 60, quando o diário de Maria Carolina de Jesus, lançado em 58, rapidamente ressurgiu, causando comoção aos leitores das classes abastadas brasileiras, nós nos sentíamos como personagens dos relatos da autora. Como Carolina Maria de Jesus, nas ruas da cidade de São Paulo, nós conhecíamos nas de Belo Horizonte, não só o cheiro e o sabor do lixo, mas ainda, o prazer do rendimento que as sobras dos ricos podiam nos ofertar. Carentes de coisas básicas para o dia a dia, os excedentes de uns, quase sempre construídos sobre a miséria de outros, voltavam humilhantemente para as nossas mãos. Restos.

Minha mãe leu e se identificou tanto com o Quarto de Despejo, de Carolina, que igualmente escreveu um diário, anos mais tarde. Guardo comigo esses escritos e tenho como provar em alguma pesquisa futura que a favelada do Canindé criou uma tradição literária. Outra favelada de Belo Horizonte seguiu o caminho de uma escrita inaugurada por Carolina e escreveu também sob a forma de diário, a miséria do cotidiano enfrentada por ela.

Importa salientar a influência de Carolina Maria de Jesus na vida de Conceição Evaristo e de sua mãe, pois possuíam vivências similares:

Conseguir algum dinheiro com os restos dos ricos, lixos depositados nos latões sobre os muros ou nas calçadas, foi um modo de sobrevivência também experimentado por nós. (...) Como Carolina Maria de Jesus, nas ruas da cidade de São Paulo, nós conhecíamos nas de Belo Horizonte, não só o cheiro e o sabor do lixo, mas ainda, o prazer do rendimento que as sobras dos ricos podiam nos ofertar. Carentes de coisas básicas para o dia a dia, os excedentes de uns, quase sempre construídos sobre a miséria de outros, voltavam humilhantemente para as nossas mãos. Restos. Minha mãe leu e se identificou tanto com o Quarto de Despejo, de Carolina, que igualmente escreveu um diário, anos mais tarde. Guardo comigo esses escritos e tenho como provar em alguma pesquisa futura que a favelada do Canindé criou uma tradição literária. (LITERAFRO, 2018)

 A atuação militante de Conceição Evaristo é natural, para a escritora “toda literatura é militante”:

Ou é uma militância para conservar o status quo, as coisas como estão, ou é uma literatura para mudar as coisas. O meu texto busca apresentar outra realidade, busca mudar as coisas. Então, podemos chamar ele de militante, sim”, disse a autora. “A arte não pode ser só entretenimento. Ela tem função social, e eu não abro mão disso”. (SILVEIRA, 2017)

O termo escrevivência foi cunhado por Conceição Evaristo, demonstrando que a produção literária possui intencionalidade e expressa a visão de mundo e as vivências do escritor. Conceição Evaristo incorpora a questão do negro escravo, da raça negra, da discriminação e da pobreza. Estigmatizada desde a infância, Conceição Evaristo se apegou ao seu mundo fictício, onde a ficção imitava a realidade na voz de sua mãe e avó, trazendo para sua alma uma ânsia de justiça, de igualdade e de liberdade.

No decorrer de sua infância, ao ingressar na escola, percebe que o negro não é tratado como igual, sofre a discriminação e sente na pele a dor da exclusão. Um discurso hedonista não é viável para o negro. O negro possui um sentimento de coletividade e de empatia para com a sua ancestralidade que difere e muito, da cultura colonial imperialista. Essa é a visão de mundo para Conceição Evaristo. E assim, usa a sua escrita como forma de enfrentamento contra o preconceito e em busca da liberdade de expressão do negro e da mulher negra. É necessário lutar, segundo Conceição Evaristo, contra a influência do branco na literatura:

A literatura, até hoje, está nas mãos de homens e homens brancos. Quebrar com esse imaginário que coloca as mulheres negras no lugar de subalternidade e não acreditar nessas mulheres como potentes também na escrita causam um desinteresse no mundo literário. (MACIEL, 2018)

Quais são as armas do escritor? A sua produção literária. E essa produção literária, para Conceição Evaristo, envolve expor o horror da escravidão, a discriminação e o racismo. Para ela “escrever é dar movimento à dança-canto que meu corpo não executa. A poesia é a senha que invento para poder acessar o mundo.” (MACIEL, 2018)

Porque quem dita o cânone com certeza não é o pobre, não é o negro, não é o índio, não é a mulher, entende? Então eu acho que essas vozes, elas são necessárias dentro do espaço acadêmico pra gente até tornar essa academia realmente mais democrática, onde todos saberes serão considerados importantes, serão assumidos com a mesma receptividade. (EVARISTO, 2010, p. 7)

A produção literária da escritora é vasta, só nos Cadernos Negros, entre 1990 a 2011, foram 28 poemas e 11 contos publicados em 13 volumes. Entre os livros publicados tem-se os romances Ponciá Vicêncio (2003) e Becos da Memória (2006); a coletânea de Poemas de recordação e outros movimentos (2017); os contos Olhos D’água (2014), Insubmissas lágrimas de mulheres (2016) e Histórias de leves enganos e parecenças (2016).

Em todo esse período, Conceição Evaristo, foi e é uma voz lutando contra o racismo e da discriminação das minorias. Assim, compreende-se que em pleno século XXI, a questão da escravidão ainda é uma ferida aberta no ideário do negro. Necessário é um número maior de vozes militantes na literatura visando a conscientização da sociedade contra o racismo e em busca da igualdade de direitos.

A MESTIÇAGEM NA PRODUÇÃO LITERÁRIA DAS ESCRITORAS

O termo mestiçagem implica na miscigenação de raças diferentes. No Brasil tal condição é direcionada ao casamento entre branco, negro e índio, gerando uma descendência “mestiça”. No discurso patriarcalista do colonizador europeu, ainda dominante na academia brasileira, apela-se para um discurso radical e preconceituoso com relação ao mestiço. Teóricos se erguem abordando as vertentes de valorização da identidade mestiça brasileira versus ao processo de embranqueamento do mestiço. A tentativa de tornar o brasileiro mais branco seria hilária se acaso não fosse absurdamente ridícula.

Entre os teóricos a favor da universalização e da valorização da identidade brasileira mestiça, encontram-se Paulo Freire e Gilberto Freyre. Ambos seguem a tendência de Michel Serres, autor do livro “Filosofia Mestiça”, onde afirma e prova ser benéfica a miscigenação, criticando a academia por não fomentar a mudança ideológica sobre o preconceito instaurado por uma minoria colonialista:

(...) as grandes instituições universitárias não são capazes de propor esse aprendizado que valoriza a mestiçagem. Cultivam condições contrárias ao exercício do pensamento, consomem redundâncias, repetem imagens velhas e vivem de impressos sucessivamente copiados. Ensinam ciências humanas que não falam do mundo e ciências naturais que silenciam sobre os homens. (SERRES, 1993)

Essa visão limitada de alguns se dá, segundo Paulo Freire, devido a um olhar micro, eixo sul-sudeste, ao invés de observar o País como um todo – um país de mestiçagem, rico em contrastes e desigualdades. As causas, segundo Paulo Freire, do caos social reinante derivam da desigualdade, não pela questão da mestiçagem, como promovido por uma mídia sectarista. “Para se alcançar a meta da humanização, que não se consegue sem o desaparecimento da opressão desumanizante, é imprescindível a superação das “situações-limites” em que os homens se acham quase coisificados. (FREIRE, 2005, p.110). Assim, a miséria existente na sociedade brasileira é uma violência e nada tem a ver com a expressão da preguiça popular ou fruto da mestiçagem. Sendo necessário ao brasileiro, enquanto indivíduo, buscar transcender esse modelo arcaico.

Paulo Freire sustenta que o ser humano necessita compreender a diferença para alcançar crescimento pessoal.

(...) quando eu compreendo o diferente descubro que há um diferente diferente, que há um diferente que é antagônico. Ou seja, ele é tão diferente de mim que não dá para dialogar comigo em termos profundos. Mas ao descobrir a possibilidade da existência do antagônico, que é o diferente mais radical, eu descubro também que até com o antagônico eu aprendo. E que, portanto, não posso me fechar sectariamente. No fundo, a minha briga não é contra contra os outros; é contra mim mesmo, no sentido de não me permitir cair na sectarização. E a sectarização é a negação do outro, é a negação do contrário, é a negação do diferente, é a negação do mundo, é a negação da vida. Quer dizer, ninguém pode continuar vivo se sectariza. Veja como o stalinismo era a antivida, como o nazismo é antivida. E a democracia só se autentica quando é vida. E esta só é vida quando é móvel, quando tem medo. É preciso se abrir ao máximo, às emoções, ao riso, aos desejos, inclusive a essa antivida que é o cientificismo. O cientificismo é uma antivida porque esse sonho de uma rigorosidade absoluta contra a não-rigorosidade do saber é a negação da vida também. (NOVA ESCOLA, 2018)

No discurso das escritoras Maria Firmino dos Reis, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, todas mestiças, não há citação sobre o tema. Ao contrário, as três escritoras demonstram um discurso militante em prol da busca da igualdade de direitos para o negro.

Maria Firmino dos Reis busca a conscientização da elite colonial, em pleno período escravagista, do caráter humano do negro, demonstrando que o escravo não é um objeto ou uma ferramenta de trabalho, mas sim, um ser humano com emoções tal como o branco.

Carolina Maria de Jesus apresenta a exclusão social, como uma violência contra o ser humano, onde a fome se torna o algoz. O afrodescendente, segundo a autora, não consegue ascender devido ao preconceito que inibe o acesso às oportunidades educativas e profissionais.

Conceição Evaristo, por sua vez, eleva a condição de afrodescendente, gritando em torno do silenciamento do branco, a justiça social.

O negro e o afrodescendente no discurso das escritoras são valorizados enquanto raça, em nenhum momento, observa-se a questão do embranqueamento, ao contrário, há sim, um clamor de conscientização da sociedade.

Para Gilberto Freyre, na sua tentativa de valorizar o mestiço e extinguir os estigmas existentes, explora a ideia da miscigenação natural ocorrida no processo de colonização.

Quanto à miscibilidade, nenhum povo colonizador, dos modernos, excedeu ou sequer igualou nesse ponto aos portugueses. Foi-se misturando gostosamente com mulheres de cor logo ao primeiro contacto, multiplicando-se em filhos mestiços que uns milhares apenas de machos atrevidos conseguiram firmar-se na posse de terras vastíssimas e competir com povos grandes e numeroso na extensão de domínio colonial e na eficácia de ação civilizadora. (FREYRE, 1980, p. 9)

Os mulatos nascidos nas Casas Grandes eram alforriados e tinham oportunidades de crescimento intelectual, onde os pais, senhores na época, forneciam educação superior. Tanto é, que a aristocracia rural se transforma e é marcada pela ascensão de bacharéis e militares mulatos. Igualmente eleva a beleza do mulato, o qual era cobiçado pelas mulheres brancas. Em decorrência, o nascimento de mulatos se propagou. (FREYRE, 1980)

Essa visão ingênua e simplista de Gilberto Freyre é contestada por Conceição Evaristo, a qual afirma não haver escolha da mulher negra, a escrava, a qual se mantinha presa e era oprimida pelos desejos de seus senhores. Essa visão romantizada de Gilberto Freyre foge totalmente à realidade vivenciada nas senzalas da época. Conceição Evaristo defende a ideia de que a opressão vivida obliterou totalmente o livre-arbítrio do escravo. E, na realidade, acabou tornando o escravo um objeto a ser usado pelo seu senhor da forma que melhor lhe aprouvesse. Em decorrência, a miscigenação ocorre de forma impositiva.

Observa-se que a questão da mestiçagem é acadêmica, não faz parte da escrevivência das escritoras. Importa salientar que essa sectarização existente, abominável aos olhos de Paulo Freire, só prejudica a possibilidade de identificação não só do afrodescendente, mas de todo o brasileiro. Atrapalha e coloca em risco o próprio desenvolvimento da sociedade brasileira.

O movimento social deve se pautar pela defesa da dignidade humana, a qual segundo Paulo Freire, é fiel à universalidade do ser humano em busca da incondicional valorização da justiça, da solidariedade, da democracia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir da análise do discurso literário de três escritoras, representando a cultura de três séculos (XIX, XX e XXI), observa-se que o período escravagista brasileiro deixou marcas muito profundas na sociedade e no negro. A literatura, militante em sua maioria, demonstrou por meio da escrevivência de Maria Firmino dos Reis, Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo, momentos temporais onde o negro ainda sofre com os resquícios da escravidão, como estigmas transformados em puro racismo.

Enquanto Maria Firmino dos Reis busca militar em prol da conscientização do negro como ser humano, possuindo um discurso claramente abolicionista; Carolina Maria de Jesus explora a questão da miséria vivida pelo negro, onde a escravidão deixou marcas profundas na alma do negro, impedindo a este, uma vivência plena; Conceição Evaristo, por sua vez, sofre na pele a ação do racismo e a repressão do branco no meio acadêmico. O Brasil ainda tem um caminho a ser percorrido em busca da igualdade e da justiça racial. O Brasil é um país com maioria negra, todos possuem sangue africano, como Maria Firmino dos Reis afirmou. Contudo, há uma rebeldia na elite acadêmica que impede a conscientização de tal fato. Mas, a sociedade se encontra mais propensa a aceitar o cidadão afro-brasileiro, bem como, a própria ancestralidade africana.

A escrevivência das três escritoras, ao descrever ficcionalmente a realidade que as cerca, gritam em meio ao silenciamento branco a necessidade de transcendência de conceitos fornecendo a todos a igualdade de direitos. Apesar de séculos diferentes, as escritoras apresentam um mesmo conteúdo: o racismo, a injustiça e a miséria vivida pelo negro.

Reafirma-se ainda, que o negro não se vê mestiço, mas afrodescendente. O discurso literário produzido pelas três escritoras não se refere à mestiçagem, mas sim, à valoração do negro. Sendo necessária a quebra do conceito de mestiçagem, buscando a construção de uma sociedade brasileira homogênea, a universalização das raças em uma única nacionalidade: a brasileira.

REFERÊNCIAS

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D’ANGELO, Helô. Quem foi Maria Firmino dos Reis, considerada a primeira romancista brasileira. 10/11/2017. Revista Cult. Disponível em: https://revistacult.uol.com.br/home/centenario-maria-firmina-dos-reis/. Acesso em: 03 nov. 2018.

EVARISTO, Conceição. Entrevista concedida a Bárbara Araújo Machado em 30 set. 2010, Rio de Janeiro, 2010, in: MACHADO, Bárbara Araújo. A literatura em movimento (negro):Conceição Evaristo e a intelectualidade negra carioca (1982-2006). História Oral. Encontro 2012.  Disponível em: http://www.encontro2012.historiaoral.org.br/resources/anais/3/1340393199_ARQUIVO_TextocompletoENHO.pdf. Acesso em: 03 nov. 2018.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 42. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.

FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: INL/MEC, 1980.

ITAÚ CULTURAL. Biografia. Conceição Evaristo. 28/09/2017. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/188-conceicao-evaristo. Acesso em: 03 nov. 2018.

JESUS, Carolina Maria de. Antologia Pessoal. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996.

JESUS, Carolina Maria de. Diário de Bitita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

JESUS, Carolina Maria de. Provérbios. São Paulo: s/ed., 1963.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de Despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2001.

LIMA, Juliana Domingos. Conceição Evaristo: “minha escrita é contaminada pela condição de mulher negra”. Nexo, 26/05/2017. Disponível em: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2017/05/26/Concei%C3%A7%C3%A3o-Evaristo-%E2%80%98minha-escrita-%C3%A9-contaminada-pela-condi%C3%A7%C3%A3o-de-mulher-negra%E2%80%99. Acesso em: 03 nov. 2018.

LITERAFRO. Carolina Maria de Jesus. 08/10/2018. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/58-carolina-maria-de-jesus. Acesso em: 03 nov. 2018.

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MACIEL, Nahima. Conceição Evaristo: “A literatura está nas mãos de homens brancos”. 15/07/2018. Correio Braziliense. Diversão e Arte. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-e-arte/2018/07/15/interna_diversao_arte,694873/entrevista-conceicao-evaristo.shtml. Acesso em: 03 nov. 2018.

NASCIMENTO, Elisa Larkin (Org.) Guerreiras da Natureza. Mulher negra, religiosidade e ambiente. São Paulo: Selo Negro, 2008.

NOVA ESCOLA. Paulo Freire: “Nós podemos reinventar o mundo”. 07 de Março de 2018. Notícias. Disponível em: <https://novaescola.org.br/conteudo/266/paulo-freire-nos-podemos-reinventar-o-mundo>. Acesso em: 11 dez. 2018.

PALMARES. A vida e obra de Carolina de Jesus, um manifesto para a literatura periférica e da afro-brasileira. 15/03/2016. Fundação Palmares. Disponível em: http://www.palmares.gov.br/?p=40983. Acesso em: 03 nov. 2018.

REIS, Maria Firmina dos. Úrsula. Coleção Acervo Brasileiro. Volume 2. São Paulo: Cadernos do Mundo Inteiro, 2017.

SERRES, Michel. Filosofia Mestiça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.       

SILVA, Régia Agostinho da. A mente, essa ninguém pode escravizar: Maria Firmina dos Reis e a escrita feita por mulheres no Maranhão. ANPUH,  Xxv Simpósio Nacional de História, Fortaleza, 2009. Disponível em: http://encontro2014.rj.anpuh.org/resources/anais/anpuhnacional/S.25/ANPUH.S25.0592.pdf. Acesso em: 03 nov. 2018.

SILVEIRA, Felipe. “Toda literatura é militante”, diz Conceição Evaristo na Feira do Livro. 16/06/2017. Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades. Disponível em: https://www.ceert.org.br/noticias/genero-mulher/17681/toda-literatura-e-militante-diz-conceicao-evaristo-na-feira-do-livro. Acesso em: 03 nov. 2018.

 

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A INFLUÊNCIA DE OLAVO BILAC

NO DISCURSO LITERÁRIO DA “PÉROLA NEGRA”

RESUMO

Laura Santos, a Pérola Negra, escritora negra paranaense, apesar de ser pouco comentada, fez história na academia e no ideário da sociedade provinciana curitibana. Nasce no início do século XX, encanta-se com o parnasianismo de Olavo Bilac, tornando-o seu “muso” inspirador, culminando com o ingresso à carreira literária muito cedo, seu primeiro soneto é produzido aos 13 anos de idade. Prodígio infantil, Laura vive em uma época difícil para o negro, a discriminação se encontrava em alta, em paralelo com as crises econômicas, oriundas de duas grandes guerras mundiais, as quais se tornaram o pesadelo econômico das famílias afrodescendentes. Mas, o ideário de Laura alcança um voo mais elevado do da realidade socioeconômica curitibana, há uma busca incessante pelo belo e pelo amor. Laura Santos é um ícone da história literária afrodescendente paranaense, por sua coragem de falar sobre amor e erotismo para uma sociedade fechada, hipócrita, discriminadora e crítica. Uma guerreira, uma verdadeira pérola, talhada pelo sofrimento imputado ao longo dos anos, sem reclamações ou rebeldias, de dentro de sua concha, Laura, concebia um mundo idílico rodeado de beleza, de amor e de prazer. Assim, no decorrer do artigo, Laura é apresentada como poetiza, mulher, ativista e principalmente, a mulher negra que se impõe pela sua utopia, jamais sendo rechaçada ou humilhada pela academia literária, composta por amigos e colegas escritores, utilizando como escudo a sua paixão pelo mundo parnasianista de Olavo Bilac.

Palavras-chaves: Laura Santos. Discurso Literário. Romantismo. Parnasianismo. Curitiba.

“E se puder doar aos versos que componho
O sentido ideal que encanta e harmoniza
Eu sentirei orgulho e sentirei a glória –
Glória de ter nascido poetisa!” (LAURA SANTOS)

Não há surpresa na paixão platônica entre a “Pérola Negra” e o “Príncipe dos Poetas Brasileiros”, separados pela morte, mas ligados eternamente pela poesia. É impossível apresentar o delicado e o profundo discurso literário da Pérola Negra, Laura Santos, sem antes expor o seu “muso” inspirador, e é claro, tão precioso quanto a pérola, o “Príncipe” Olavo Bilac.

Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac (1865-1918) recebe o título principesco em 1907, vinte e três anos após a publicação de seu primeiro poema “A sesta de Nero”. Desistiu das faculdades de medicina e de direito, o “príncipe” não tinha outra meta senão, a entrega de corpo e alma à poesia, atingindo o apogeu de sua produção literária e reconhecido como orador mundialmente, publicando em “praticamente todas as revistas e jornais importantes.” (LAJOLO, 2015, índice)

Vivendo sob a força da corrente literária do parnasianismo, Bilac é metódico quanto ao uso da estética, à criação de rimas raras e à escrita formal. Entretanto, não deixava tal sistematização obscurecer a mensagem de seus poemas, ricos em conteúdo e profundo em sentimentos. 

“Bilac não consegue reprimir as emoções que lhe assaltam o espírito ao pressentir a derrocada da grande poesia, ameaçada metaforicamente por bárbaros destruidores de seu altar sagrado” (PEIXOTO, 1999, p. 169)

O subjetivismo, marca do Romantismo, não foi completamente exterminado no Parnasianismo, mas sim, apresentado em uma nova roupagem, um mix bem estruturado de ambas as correntes, como sustenta Fischer (2003, p. 221) “Bilac frequentou temas perfeitamente românticos, e neles encontrou material para poemas ainda hoje legíveis.”

Bilac era pura demonstração da paixão anímica, foi audacioso ao abandonar o curso de Medicina, era boêmio, tinha profunda veia poética, um bravo lutador das causas nacionalistas – abolicionista, republicano e antiflorianista – ao ponto de ser preso e exilado em Minas Gerais. A obra de Bilac, segundo Lajolo (2015, p. índ.) “oscila entre o perfil acadêmico de um príncipe dos poetas fiel à estética parnasiana e a aura de poeta popular cantado nas ruas e declamado nas festas.”

Ora, Bilac era do povo e lutava pelo povo, sua história de vida e meta pessoal envolvia muito mais que si próprio, abraçava a nação brasileira, vendo-a com sensibilidade e lutando pela sua inocência para a formação de uma nação com identidade forte. Na escrita literária de Bilac era possível encontrar sua força e sua sensibilidade, os opostos unindo-se em perfeita harmonia na busca de um objetivo único: o amor.

A PÁTRIA

Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!
Criança! não verás nenhum país como este!
Olha que céu! que mar! que rios! que floresta!
A Natureza, aqui, perpetuamente em festa,

É um seio de mãe a transbordar carinhos.
Vê que vida há no chão! vê que vida há nos ninhos,
Que se balançam no ar, entre os ramos inquietos!
Vê que luz, que calor, que multidão de insetos!

Vê que grande extensão de matas, onde impera
Fecunda e luminosa, a eterna primavera!
Boa terra! jamais negou a quem trabalha
O pão que mata a fome, o teto que agasalha...

Quem com seu suor a fecunda e umedece,
vê pago o seu esforço, e é feliz, e enriquece!
Criança! não verás país nenhum como este:
Imita na grandeza a terra em que nasceste! (BILAC, 1997)

Esperança era a bandeira de Bilac, a qual foi imortalizada no Hino à Bandeira “Salve lindo pendão da esperança / Salve símbolo augusto da paz(...).”

Olavo Bilac se tornou ícone da poesia e do nacionalismo brasileiro, influenciando gerações futuras na esperança de um mundo melhor e mais justo, cantado em verso e prosa.

Esperança foi talvez, o chamariz para a “Pérola Negra”, deflagrando nesta, uma admiração tão profunda à escrita poética de Bilac que o elege seu “muso” inspirador.

Laura Santos (1919-1981) é a única poetisa curitibana dos anos 1950. Até aí, nenhum fato surpreende, mas Laura Santos, além de ser uma mulher nascida no início do século XX, é também negra. Uma mulher negra nascida após 30 anos da assinatura da abolição da escravatura numa cidade provinciana, colonizada por europeus, uma cultura racista e uma sociedade hipócrita estagnada na ilusão do imperialismo português. Aos 13 anos escreve seu primeiro soneto “Aspiração”, em 1937 ganha um concurso literário com a obra “História da Evolução da Aviação” e em 1953 é premiada pela Academia José de Alencar, da qual foi sócia fundadora e ocupante da cadeira Júlia da Costa, segundo o Instituto Cultural Arte Brasil (2015), com a obra “Sangue Tropical”.

O que chama a atenção em Laura é, sem dúvidas, a sua produção junto à sociedade curitibana, exercendo atividades profissionais de destaque como funcionária pública, jornalista, escritora colaboradora dos jornais Gazeta do Povo e Diário da Tarde, ambos em Curitiba, e de revistas literárias. Para uma mulher e uma afrodescendente na época, essa atuação profissional era somente concedida às genialidades, personalidades de destaque, pessoas que faziam a diferença e contribuíam para com o desenvolvimento cultural da sociedade.

(...) cursou enfermagem, porque queria participar da 2° Guerra Mundial como enfermeira da Cruz Vermelha, sonho que não conseguiu realizar. Depois acabou trabalhando como educadora sanitária, cuja função era orientar a população sobre hábitos de higiene — exerceu este ofício até a aposentadoria. (ROCHA, 2016)

Em toda a história de Laura, não se ouve de amigos ou relatos em que tenha sofrido racismo. Ao contrário, Laura era considerada uma alma romântica e sedenta de amor. Era reconhecida como “independente, idealista e com uma personalidade forte e à frente do seu tempo”. (ROCHA, 2016)

O colega poeta Tonicato Miranda, segundo o Instituto Cultural Arte Brasil (2015), descreve Laura Santos como “sem complexos, inteligente, elemento positivo e querida nos ambientes onde convivia. Assídua presença nas sessões da Academia José de Alencar, quando e onde lia seus poemas e ouvia a leitura de poesias de outros poetas”.

Comportamento este incomum para as escritoras afrodescendentes, as quais buscavam, segundo Pereira (2014, p. 2), derrubar os “estereótipos estabelecidos sob a perspectiva eurocêntrica ou colonial, ao mesmo tempo em que contribuem para construção de uma identidade afro-brasileira positiva”.

Mas, Laura fugia a esse comportamento como relata Helena Kolody, poetisa paranaense e amiga de Laura, ao assegurar “a inexistência de qualquer atitude complexada quanto à sua cor, porque sempre foi recebida em pé de igualdade com outros companheiros de arte e profissão”. (INSTITUTO CULTURAL ARTE BRASIL, 2015)

Desde cedo Laura se apaixonou pela poesia, na realidade, Olavo Bilac, era seu ícone literário. Ambos os poetas foram expostos a movimentos nacionalistas fortes, Bilac com o fim do imperialismo e Laura vivenciando o final de uma guerra mundial e início de outra. Ambos eram lutadores, procurando de alguma forma auxiliar no desenvolvimento de uma nação forte e contra o fascismo. Enquanto Bilac militava contra a repressão por meio de seu discurso literário, Laura trazia para o leitor o desabrochar da mulher, a volúpia e o desejo expostos em poesia. De certa forma, Laura, tal como Bilac, lutava por uma sociedade melhor, uma evolução, visando incorporar a consciência da mulher como um ser senciente, sedenta de amor e principalmente, dona de desejos carnais.

A marca da volúpia na escrita de Laura Santos, por incrível que pareça, é direta e sem pudor, atingindo profundamente o âmago do leitor, sentimentos estes pouco discutidos na sociedade da época.

SANGUE TROPICAL (1953)

Quero na limpidez
das rimas cristalinas
cantar em sons ardentes
o que vai na minha alma, o que vai no meu sangue...
 
A intensa embriaguez
das auroras divinas
e os cálidos poentes
em que o sol estertora, a vasquejar exangue.
 
Quero cantar o amor
na doce efervescência
de uma noite de orgia
entre os moles coxins de um harém oriental!
 
Quero cantar o amor
sem laivos de inocência,
na fulgente alegria
que revolve o meu sangue ardente, tropical. (WOELNER, 2007, p. 18-19)

É interessante observar que Laura não expõe a sua afrodescendência no poema acima, mas sim, a sua tropicalidade. Compreende-se uma necessidade em Laura de lutar pelos direitos da mulher, sem raça e nem cor, apenas o direito de sentir da mulher brasileira.

Contudo, a literatura nacional apresentava um discurso obcecado pela pele mulata, identificando a mulher como desfrutável e reduzida “à esfera carnal ou como mão de obra servil.” (DUARTE, 2009, p. 6-7, citado por SALES, 2012, p. 24)

Este estereótipo foi alimentado ao longo dos anos, salienta Sales (2012), pelos escritores Gregório de Matos (sonetos dedicados à mulata Jelu), Manuel Almeida (personagem vidinha do romance Memórias de um Sargento de Milícias), Bernardo Guimarães (personagem Rosa de A Escrava Isaura), Jorge Lima (poema Essa negra fulô), Mário de Andrade (Poemas da Negra), e não menos famosos os romances de Jorge Amado como Gabriela cravo e canela.

Foram e são romances, contos e poemas, cujas configurações construídas por escritores não negros, em sua maioria, expressam situações em que a malícia, a imoralidade, a permissividade são apresentadas como características inerentes ao comportamento moral da mulher negra, aparecendo no imaginário brasileiro como um corpo à disposição, pronto para consumo pela dominação masculina: um corpo possuidor de uma sexualidade voraz e pervertida, tratado como um corpo-produto e corpo-objeto. (SALES, 2012, p. 24)

Laura Santos não fala do corpo de uma mulher negra ou da voluptuosidade e sensualidade da mulata brasileira, apenas fala da busca feminina pelo amor e tal com ocorre no homem, a necessidade da satisfação dos desejos sexuais, os quais abrasam a pele e incendeiam os sentidos...a mulher livre para viver e para sentir. 

A busca pela identidade, segundo Hall (2003), abrange uma concepção sociológica ao ser refletido nos discursos literários vivências de diáspora e indivíduos subordinados à transformação social. Sendo comum, a projeção do escritor nas identidades culturais, enquanto são internalizados significados e valores, tornando então, estes partem do escritor para alinhar os próprios sentimentos subjetivos com os lugares objetivos ocupados concretamente no contexto social e cultural.

A identidade é construída, segundo Castells (2002, p. 23), partindo de material fornecido pela “história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, e pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso.”

Laura viveu na sociedade curitibana, na metade do século XX, uma época em que discurso literário sobre o negro assumia dois posicionamentos apenas, o primeiro se deve a condição de objeto e o segundo como uma atitude compromissada. Em decorrência, enfatizam Proença Filho (2004) e Hall (2003), a construção da identidade negra e de seu imaginário precisavam se desligar dos elementos históricos relativos à relação de dominação e poder.

Os poemas de Laura não expressam a sua condição de mulher negra, apenas o de mulher insatisfeita. Essa necessidade de expor a mulher desejosa, sedenta de prazer, com certeza é influenciada por seu “muso”, Olavo Bilac, o qual expõe no corpo feminino traços de sensualidade inatos, como é demonstrado no excerto a seguir:

SATÂNIA (1888)

Nua, de pé, solto o cabelo às costas,
Sorri. Na alcova perfumada e quente,
(...)
Depois, tremendo, como a arfar, desliza
Pelo chão, desenrola-se, e, mais leve,
Como uma vaga preguiçosa e lenta,
Vem lhe beijar a pequenina ponta
Do pequenino pé macio e branco.
 
Sobe... cinge-lhe a perna longamente;
Sobe... — e que volta sensual descreve
Para abranger todo o quadril! - prossegue.
Lambe-lhe o ventre, abraça-lhe a cintura,
Morde-lhe os bicos túmidos dos seios,
Corre-lhe a espádua, espia-lhe o recôncavo
Da axila, acende-lhe o coral da boca,
E antes de se ir perder na escura noite,
Na densa noite dos cabelos negros,
Pára confusa, a palpitar, diante
Da luz mais bela dos seus grandes olhos.
(...) (BILAC, 2002)

No poema acima, Bilac utiliza a estética parnasiana para esboçar uma mulher sedutora e real, saindo do modelo das “virgens impossíveis” preconizado pelo Romantismo, sem adentrar no contexto pornográfico ou vulgar. Segundo Furtado e Silva (2010, p. 624), ao citar Paz (1994), “o erotismo não imita a sexualidade, ‘é a sua metáfora’. O texto erótico é a representação textual dessa metáfora”, em consequência, a intencionalidade de Bilac é o de celebrar “o amor sem medo e culpa”. Intencionalidade esta, encontrada igualmente na produção literária de Laura Santos.

Esse modelo parnasianista para descrever a voluptuosidade feminina, Bilac, usou com maestria em seu poema Abyssus, ao representar a mulher como abismo e perdição:

Bela e traidora! Beijas e assassinas...
Quem te vê não tem forças que te oponha:
Ama-te, e dorme no teu seio, e sonha,
E, quando acorda, acorda feito em ruínas...
 
Seduzes, e convidas, e fascinas,
Como o abismo que, pérfido, a medonha
Fauce apresenta flórida e risonha,
Tapetada de rosas e boninas.
(...) (BILAC, 2014, p. 13)

No excerto acima do poema Abyssus é possível ver a nítida correlação entre a perdição, o prazer e a volúpia emanados pelas mulheres, salientado por Bilac. “Corpo que para o poeta é um penhasco condutor da morte e da ruína, por isso amá-la é provar da alegria, do prazer, mas também é encontrar o caminho do enlouquecimento e da perda da existência.” (SALES, 2012, p. 627)

Laura Santos não explora o corpo feminino ambiguamente, oscilando entre prazer e destruição, ao contrário, mostra a sede da mulher a qual deve ser saciada, pois há a necessidade de preencher um vazio interior, como demonstra no poema a seguir:

PRIMEIRO POEMA

Quando, envolta em penumbra,
A meditar me ponho,
Na doce exaltação deste exaltado sonho,
Na esplêndida mudez desta noite sem lume,
Principio a sentir em tudo o teu perfume.
Levemente ao redor do meu leito flutuas;
Sinto em meus seios nus as tuas faces nuas,
E o teu vulto sutil, subjetivamente,
Em insano prazer,
Em volúpia fremente,
Como serpe voraz, se enrola no meu ser.
 
E quando eu volto, de repente,
À fria realidade,
Compreendo que é a saudade
Que me fez de sentir,
Que me fez te gozar;
E, nesta noite fria,
Eu encontro somente
A triste solidão de minha alma vazia. (SANTOS, 1959)

Essa tristeza salientada por Laura retrata, talvez, os efeitos do mutismo frente aos problemas de viver numa sociedade branca, machista e hipócrita como a curitibana. Essa hipótese é levantada também por Rose Marye Bernardi, ao estudar a produção poética da Pérola Negra, concluindo que Laura expõe em seus poemas “os sofrimentos de um corpo e de uma alma exasperadamente feminina”, utilizando o corpo como meio de comunicação com o mundo exterior, mas “o corpo, fremente de desejo, está sempre só, concretizando a ‘triste solidão de sua alma vazia’.”  O erotismo utilizado “em seus poemas, são uma espécie de metáfora de sua relação básica com o mundo, de viver plenamente, de ser feliz”. (MILLARCH, 1990, p. 20)

A alcunha “Pérola Negra”, nesse sentido, não é fortuito. Há uma profunda consonância entre o processo formativo da pérola e a vida de Laura Santos: ambas foram produzidas com sofrimento. Laura viveu com uma dor contínua, algo machucando a sua alma ao ponto de produzir uma poesia rara, preciosa e única. Essa dor só era aplacada quando exposta em verso e prosa.

A influência do discurso de Olavo Bilac é tão contundente na escrita de Laura, que se torna impossível à Pérola Negra não citá-lo em sua obra, mesmo que seja uma alusão a uma visão etérea e divina, como a da deusa Frinéia, uma musa sedutora e inalcançável para Bilac:

O JULGAMENTO DE FRINÉIA (1888)

Mnezarete, a divina, a pálida Frinéia, 
Comparece ante a austera e rígida assembleia 
Do Areópago supremo. A Grécia inteira admira 
Aquela formosura original, que inspira 
E dá vida ao genial cinzel de Praxíteles, 
De Hiperides à voz e à palheta de Apeles. 

Quando os vinhos, na orgia, os convivas exaltam 
E das roupas, enfim, livres os corpos saltam, 
Nenhuma hetera sabe a primorosa taça, 
Transbordante de Cós, erguer com maior graça, 
Nem mostrar, a sorrir, com mais gentil meneio, 
Mais formoso quadril, nem mais nevado seio. 

Estremecem no altar, ao contemplá-la, os deuses, 
Nua, entre aclamações, nos festivais de Elêusis... 
Basta um rápido olhar provocante e lascivo: 
Quem na fronte o sentiu curva a fronte, cativo... 
Nada iguala o poder de suas mãos pequenas: 
Basta um gesto, — e a seus pés roja-se humilde Atenas... 
Vai ser julgada. Um véu, tornando inda mais bela 
Sua oculta nudez, mal os encantos vela, 
Mal a nudez oculta e sensual disfarça, 
cai-lhe, espáduas abaixo, a cabeleira esparsa... 
(...) (BILAC, 2002)

Mas, para Laura, Frinéia é símbolo da mulher sedutora, igualmente inalcançável, efetuando assim, analogia à Lua, sol dos amantes e luminar dos boêmios, como salienta no poema a seguir:

TERCEIRO POEMA

Na limpidez da noite pelo espaço
Há reflexos de aço,
Luminosos...
Dir-se-ia
Que a natureza envolta em véus luxuosos,
Em roupagem de seda,
Macia, se queda,
Toda em ânsia incontida,
Em uma longa expectativa indefinida...
 
A lua,
Inteiramente nua,
De mais alvor que os alcantis polares,
Vem, num desgarre soberano,
Pelos ares,
Linda como Frinéa emergindo do oceano.
 
E na minha alma
Incalma,
Incandescida,
A estorcer-se em desejos
De lúbrico furor,
Vibra o último som da música proibida...
E em meus lábios flameja o delírio dos beijos
Para imortalizar meu cântico de amor ! (SANTOS, 1959)

É possível observar o uso de Frinéia como meio de invocação ao romantismo de Bilac, enquanto que a alma de Laura, está insatisfeita por necessitar do beijo de seu muso para imortalização de cântico amoroso...a ligação de duas almas sensíveis e poéticas. A união do Príncipe com a Pérola Negra.

Justifica-se tal união pelo fato de que somente um homem como Bilac poderia influenciar uma mulher como Laura, ícones de sensibilidade, amor, nacionalismo e volúpia, ambos se unem em um beijo poético sem fim. Esse é o legado de ambos os poetas. A marca de que o discurso literário pode não apenas unir, mas se tornar o responsável por sedimentar relações humanas, por meio de ideias, sentimentos e ânsias. 

REFERÊNCIAS

BILAC, Olavo. Obra reunida. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997.

BILAC, Olavo. Poemas de Olavo Bilac. Seleção de Poemas. São Paulo: Melhoramentos, 2014.

BILAC, Olavo. Sarças de Fogo. In: Antologia: Poesias. São Paulo: Martin Claret, 2002.

Castells, Manuel. O Poder da Identidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

FISCHER, Luís Augusto. Parnasianismo brasileiro: entre ressonância e dissonância. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.

FURTADO, Fabiana Câmara; SILVA, Larissa Petrusk Santos. De Satânia a Abyssus: uma análise da poesia erótica bilaquiana. IV Colóquio de História, Abordagens interdisciplinares sobre história da Sexualidade, UNICAP, 16 a 19 de setembro de 2010. Disponível em: http://www.unicap.br/coloquiodehistoria/wp-content/uploads/2013/11/4Col-p.616.pdf. Acesso em: 04 nov. 2016.

Hall, Stuart. Da Diáspora: Identidades e Mediações Culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.

INSTITUTO CULTURAL ARTE BRASIL. Laura Santos: poeta negra do Paraná. 26/12/2015. Disponível em: http://ongartebrasil.blogspot.com.br/2015_12_01_archive.html. Acesso em: 04 nov. 2016.

LAJOLO, Marisa. Olavo Bilac. Melhores poemas. São Paulo: Global, 2015.

MILLARCH, Aramis. O romantismo de Laura, poeta negra da cidade. Estado do Paraná, Almanaque, 14/11/1990.

PEIXOTO, Sérgio Alves. A consciência criadora na poesia brasileira: do barroco ao simbolismo. São Paulo: Annablume, 1999.

PEREIRA, Rodrigo da Rosa. Autoria feminina em prosa nos Cadernos Negros -Questões de gênero e etnia. In: X Seminário Internacional de História da Literatura, Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 2014.

Proença Filho, Domênico. A Trajetória do Negro na Literatura Brasileira. Estudos Avançados, vol. 18, 50, 161-193, 2004.

ROCHA, Claudecir O. Laura Santos e a arte do incontrolável desejo. Cândido Jornal da Biblioteca Pública do Paraná. Secretaria da Cultura do Estado do Paraná. Disponível em: http://www.candido.bpp.pr.gov.br/modules/conteudo/ conteudo.php?conteudo=997. Acesso em: 08 nov. 2016.

SALES, Cristian S. Expressões do erotismo e sexualidade na poesia feminina afrobrasileira contemporânea. Revista Ártemis, v.14, ago-dez, 2012, p. 22-36.

SANTOS, Laura. Um Século de Poesia. Curitiba: Imprensa Oficial do Estado, 1959.

WOELLNER, Adélia Maria. A voz da mulher na literatura. Revista de Literatura, História e Memória. Unioeste, Cascavel, vol. 3, n. 3, 2007, p. 9-34.

 

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ORGULHO DE SER NEGRO

O DISCURSO AUTOBIOGRÁFICO DA ATIVISTA SOCIAL GENI GUIMARÃES

RESUMO

Nas últimas décadas se vê um discurso literário ativista buscando a valorização da negritude e o orgulho da raça. Geni Guimarães, escritora afro-brasileira, vêm, por meio de sua produção literária, dar voz à sua negritude, sendo reconhecida no País ao receber prêmios como o Jabuti e Adolfo Aisen por sua novela “A cor da ternura”. Em decorrência, este artigo visa analisar o seu livro autobiográfico denominado “Leite do Peito”, onde Geni aborda em contos a própria história. Essa era a sua necessidade: “Escrevi porque eu tinha que registrar a vivência de uma família negra, porque este livro é autobiográfico, eu precisava falar dos meus traumas, das minhas dores e das minhas alegrias, eu tinha que colocar isso pra fora.” A dor e o embate entre suas origens e a ideologia de uma sociedade branca dominante precisava ser externalizada, transformada em prosa para que todos ouçam os gritos silenciosos da opressão vivenciada ao longo dos anos. Esse fato fez com que outros afro-brasileiros tomassem coragem e se erguessem na construção de um ideário positivo e não mais oprimido da raça negra. Por meio do discurso de Geni Guimarães o leitor se coloca em contato à pessoa de Geni.

Palavras-chave: Ativismo social; Valores étnicos e sociais; Autobiografia.

BLACK PRIDE – DISCOURSE AUTOBIOGRAPHIC OF THE GENI GUIMARÃES

ABSTRACT

In the last decades would have a literary activist discourse seeking the valorization of blackness and the pride of the race. Through her literary production, Geni Guimarães, through her literary production, gives voice to blackness, being recognized in the Brazil by receiving awards such as Jabuti and Adolfo Aisen for her novel "The color of tenderness". So, this article aims to analyze his autobiographical book called "Milk Breast", where Geni approaches the story itself in short stories. That was his need: "I wrote because I had to register the experience of a black family, because this book is autobiographical, I needed to talk about my traumas, my pains and my joys, I had to put that out." The pain and conflict between its origins and the ideology of a dominant white society needed to be outsourced, transformed into prose so that everyone could hear the silent cries of the oppression experienced over the years. This fact led other Afro-Brazilians to take courage and rise up in building a positive and no more oppressed ideology of the black race. Through the discourse of Geni Guimarães the reader puts himself in contact with the person of Geni,

Keywords: Social activism; Ethnic and social values; Autobiography.

INTRODUÇÃO

A questão do preconceito racial é um fenômeno cultural cujas características transcendem variáveis fixas, como a cor da pele. No Brasil, a história demonstra um racismo voltado para questões socioeconômicas, não estritamente étnica.

Os sociólogos Frazier e Pierson debatem a questão indicando que o preconceito racial não envolve a cor apenas, mas também, a classe. Em decorrência, emerge o paradigma criado por Herbert Blumer, o qual afirma que o preconceito racial é um processo coletivo onde pessoas formam grupos dominantes, aceitos na sociedade como tal, exercendo opressão sobre outros grupos. O preconceito racial desse grupo dominante, segundo Blumer (1939) apud Guimarães (2004, p. 10) possui quatro características principais: superioridade, a raça subordinada além de diferente é alienígena, possui monopólio de privilégio, receio de que a raça subordinada anseie os mesmos privilégios da raça dominante.

Na sociedade brasileira se observa a dominação de uma cultura colonizadora europeia, onde o dono das terras possuía escravos e sobre os quais exercia domínio. As quatro características elencadas por Blumer se encontram embutidas nessa relação: a superioridade da raça branca sobre a negra; a raça negra não possui identidade brasileira, pois o brasileiro é branco; o branco possui privilégios em relação ao negro; medo que o negro retire os privilégios adquiridos pela dominação branca.

Mudar esse cenário é função da própria sociedade. Mas, isso apenas, não basta. Pois, na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, há a assertiva legal de que “todos são iguais perante a lei”. E, mesmo assim, a sociedade não conseguiu transformar essa cultura de dominação. Faz-se necessário a mudança cultural para quebrar as características do paradigma instaurado.

Este artigo apresenta o livro autobiográfico de Geni Guimarães, Leite do Peito, onde a escritora afro-brasileira explana desde a mais tenra infância como a cultura de dominação foi transmitida e os efeitos desta, na sua vida.

A base metodológica do artigo envolve o uso da hermenêutica, buscando a essência da cultura de dominação existente e como esta, interferiu na infância da escritora.

Uma das características do preconceito racial, considerada como pilar, é de que a raça subordinada é diferente/alienígena. O negro não é diferente do branco, ambos são idênticos organicamente, possuem os mesmos sentimentos de amor e de dor. Como deixar claro isso para a sociedade? Mediante o discurso literário de escritores afro-brasileiros, como Geni Guimarães, ao descrever em prosa a sua vida. Este ativismo social, por meio da produção literária, é o passo inicial necessário para a transformação desse paradigma de preconceito racial.

A ATIVISTA GENI GUIMARÃES

O nome completo da escritora é Geni Mariano Guimarães, nasceu em São Manoel, cidade paulista, em área rural, fazenda Vilas Boas, no dia 08 de setembro de 1947. (Literafro 2018; Guimarães 2010)

A família de Geni é grande, portanto a sua infância foi povoada por inúmeras vozes. Cresceu com nove irmãos, pai, mãe e avó. (Gonçalves 2016)

Muda-se, aos cinco anos, para outra fazenda localizada na cidade paulista de Barra Bonita, morando nesta cidade até a atualidade. E ali inicia a sua educação formal e se forma como professora, publica os seus primeiros trabalhos nos jornais Debate Regional e Jornal da Barra. As publicações se diversificaram entre contos, poemas e crônicas. (Literafro 2018; Guimarães 2010)

Desde os 8 anos de idade Geni já produzia poemas, mas sua primeira publicação se dá aos 32 anos, em 1979, com o livro Terceiro Filho, um livro de poemas sobre a sua adolescência. (Guimarães 2010)

A partir da década de 1980, Geni Guimarães entra em uma fase de inspiração ativista, motivada pelo engajamento com o grupo Quilombhoje. Inicia uma fase de produção literária voltada para o protesto e para a valorização do negro. (Literafro 2018)

Dedicou-se às questões sociais, principalmente no que se refere à afirmação da afrodescendência, chegando a se candidatar para o cargo de vereadora de sua cidade em 2000. Porém, não foi eleita. Em 1981, publicou dois contos no número 4 de Cadernos Negros, assim como seu segundo livro de poesia, fortemente marcado pelos tons de protesto e de afirmação identitária. (Literafro 2018)

Geni Guimarães produziu livros, contos, poemas e literatura infantil. A diversidade de sua produção sugere a existência de um universo criativo ampliado. Para a escritora esse universo é alimentado pelos bate papos na varanda de sua casa com as vizinhas.

Da sua casa em Barra Bonita (SP), acompanha a movimentação de jovens escritoras negras para quem Geni é uma referência. (...) Com a literatura não se deslumbra. Gosta mesmo é de sentar na calçada todas as tardes com as outras mulheres do bairro e bater um bom papo. “Isso preenche minha vida e dá opção de escolha na minha literatura”, finaliza sorrindo. (Gonçalves 2016)

Até o ano de 2010, Geni Guimarães morava na cidade de Barra Bonita e exercia a profissão de professora. (Guimarães 2010)

LEITE DO PEITO – A AUTOBIOGRAFIA USADA COMO FERRAMENTA PARA VALORAÇÃO DA RAÇA NEGRA

Geni Guimarães publicou o livro de contos “Leite do Peito” cuja essência é autobiográfica em 1988. De acordo com a própria Geni Guimarães, a inspiração para escrever esse livro se deve à sua própria consciência, a necessidade de expor à sociedade como a ideologia da dominância branca frustrou e machucou a sua alma.

“Escrevi porque eu tinha que registrar a vivência de uma família negra, porque este livro é autobiográfico, eu precisava falar dos meus traumas, das minhas dores e das minhas alegrias, eu tinha que colocar isso pra fora.” (Literafro 2018)

A intencionalidade de Geni Guimarães ao escrever o livro é a de mostrar a vida familiar do negro, o relacionamento entre os familiares e os sentimentos que os ligam.

No conto, Primeiras Lembranças, Geni Guimarães, expõe suas primeiras impressões da infância, provavelmente a escritora possuía uns 3 anos de idade. Relata como mamava no peito da mãe, já em pé, e a sua adoração pela mãe. O relacionamento entre mãe e filha é recheado de muito amor.  A menina Geni era a caçula tendo como irmãs mais velhas a Cecília, a Cema – portadora de deficiência mental, a Arminda e a Iraci.

Desde essa idade, Geni sente curiosidade sobre a sua cor. Inicialmente, a menina Geni Guimarães, acha que sua cor é oriunda de tinta:

— Mãe, se chover água de Deus, será que sai a minha tinta?

— Credo em cruz. Tinta de gente não sai. Se saísse, mas se saísse mesmo, sabe o que ia acontecer? — Me grudou e, fazendo cócegas na barriga, foi dizendo: - você ficava branca e eu preta, você ficava branca e eu preta, você branca e eu preta ...

Repentinamente paramos o riso e a brincadeira. Pairou entre nós em silêncio esquisito.

Achei que ela estava triste, então falei:

— Mentira, boba. Vou ficar com esta tinta mesmo. Acha que ia deixar você sozinha? Eu não. Nunca, nunquinha mesmo, tá? (Guimarães 1988: 16-17)

O silêncio esquisito que pairou no meio da brincadeira, demonstra certo desconforto em relação à cor. Há uma diferença implícita e um anseio para não ser diferente. Desde cedo Geni tem contato com o diferente, ou seja, com pessoas brancas, tornando normal a curiosidade pelas pessoas possuírem cores diferentes. Crianças são curiosas e estão atentas a tudo, tanto é que sentiu o peso do silêncio que paira sobre a questão “cor” demonstrado pela mãe.

Outro detalhe interessante expressado no conto é o ciúme de Geni perante o nascimento do novo irmãozinho, ladrão do seu lugar no colo da amada mãe, tornando-se objeto de seu ódio.

Pela psicologia é normal os irmãos sentirem ciúmes uns dos outros, principalmente quando retiram a atenção que possuíam antes. Esse comportamento é normal no desenvolvimento das crianças.

Mas, a menina Geni com o medo de perder a sua mãe no parto efetua uma promessa para não depreciar com xingamentos a criança não nascida, comparando-a com o menino Jesus. Contudo, ao nascer a menina Geni percebe que a criança é negra, então fica aliviada da promessa porque não pode ser chamado de “menino Jesus”.

“Não achei bonito nem feio.

Apenas senti um grande alívio, quando me vi descompromissada de chama-lo de menino Jesus.

Era negro”. (Guimarães 1988: 19)

A menina Geni havia enraizado desde cedo que a família santa era branca, oriundo das imagens que haviam na casa, como a “Nossa Senhora do Oratório da minha mãe”. A menina Geni já havia sido doutrinada na ideologia do branco. Como também apresentado no conto Alicerce:

- Pai, que cor será que é Deus...

- Ué...Branco – afirmou.

- Mas acho que ninguém viu ele mesmo, em carne e osso. Será que não é preto...

- Filho do céu, pensa no que fala. Tá escrito na Sagrada Escritura. A gente não pode ficar blasfemando assim.

- Mas a Sagrada Escritura...

Ele olhou-me reprovando o diálogo e, porque não podia ir mais longe, acrescentei apenas:

- É que se ele fosse preto, quando ele morresse, o senhor podia ficar no lugar dele. O senhor é tão bom.

Em toda a minha vida, nunca havia visto meu pai rir tanto. (Guimarães 1988: 78)

Ao mesmo tempo que a menina Geni tenta convencer o pai sobre a incerteza da cor de Deus, demonstra um imenso carinho, respeito e amor ao mesmo.

No conto, Fim do Meus Natais de Macarronadas, a menina Geni, desconhecedora da tradição natalina de presentes e papai Noel, expõe o significado de Natal para a sua família: era dia de banquete.

Natal para nós era mesmo comer gostoso, sentados ao redor da mesa, ou num degrau da escada. Comíamos no princípio com desejo de um ano. Depois comíamos mesmo por comer. A barriga doía de cheia, mas a bacia estava cheia de macarrão grosso, vermelho de massa e tomatinhos caipiras. Então a gente comia, comia. Comia porque o macarrão era lindo, porque era dia de banquete, porque era Natal. Comia porque sim. (Guimarães 1988: 35-36).

A reunião da família era o verdadeiro motivo do Natal, todos empenhados em preparar o melhor para juntos se fartarem. Não que em algum momento Geni exponha que sua família passava por dificuldades, ao contrário, a escritora passa uma imagem de felicidade plena.

No conto Tempos Escolares, a escritora cita uma pessoa importante no seu universo idílico infantil, a Nhá Rosária, uma idosa negra, ex-escrava, moradora em outra fazenda. Pelo que sugere o texto, Nhá Rosária teve um filho com o fazendeiro – o Sinhozinho Pedro João – o qual foi reconhecido pelo pai e foi tratado como branco, tornando-se o proprietário da fazenda. O ranço do hábito de chamar de “Sinhozinho” indica que mesmo mãe, a ex-escrava Nhá Rosária não havia perdido a servidão ao branco. Observa-se, ser comum ao negro a subserviência não somente ao branco, mas ao mestiço. Essa passividade do negro é demonstrada claramente na sua autobiografia.

Mas, foi Nhá Rosária quem povoou a mente da menina Geni quanto as histórias sobre a escravatura.

“A verdade é que, quando a Vó Rosária (assim a chamávamos) chegava, já vinha acompanhada de toda a criançada. Todos queriam ouvi-la contar tão lindas e tristes histórias.” (Guimarães 1988: 50-51)

As histórias contadas pela Vó Rosária, para a menina Geni, representava a história de um povo...a do seu povo.

Comovente é o relato e a reação da menina Geni ao ouvir a descrição da “Vó Rosária” sobre a abolição da escravidão:

Chegamos quando ela dizia:

— ... e só com um risco que fez no papel, libertou todo aquele povaréu da escravidão. Uns saíram dançando e cantando. Outros, aleijados por algum sinhô que não foi obedecido, só cantavam. Também bebida teve a rodo, pra quem gostasse e quisesse.

— Quem? — Perguntei baixinho pro Lilico, que havia pego a história no começo.

— Uma tal de Princesa Isabel. Cala a boca!

E a Vó Rosária continuou. Ora enchia a fala de ênfase, ora falava tão baixo e emocionada, que precisávamos aguçar os ouvidos para entender.

Determinada hora, não aguentei e perguntei:

— Vó Rosária, ela era santa?

Mas ela já dormia, sentada, e a criançada começou a levantar-se para sair. No entanto, não fiquei sem resposta:

— Só haveria de ser, filha — disse meu pai.

— Das mais puras e verdadeiras — confirmou minha mãe.

— Só podia ser — pensei eu. (Guimarães 1988: 51-52)

A Princesa Isabel neste dia se tornou, uma pessoa boa digna de respeito para a menina Geni.

No conto Metamorfose, a escritora ao relatar seus primeiros anos na escola expõe que no segundo ano, aos 8 anos de idade, já demonstrava seu dom literário com o seu primeiro poema:

Ano seguinte, já no primeiro dia de aula, levava na bolsa um poema de quatro versos que dizia assim:

Foi boa para os escravos,

E parecia um mel,

Acho que é irmã de Deus,

Viva a princesa Isabel. (Guimarães 1988: 61)

Mesmo orgulhosa do poema, a menina Geni, pela sua timidez não teve coragem de mostra-lo à professora. Mas, no segundo dia de aula, quando a professora elogiou a sua caligrafia, a menina Geni entrega o poema para ela ler. A professora chama o diretor e ambos conversam sobre o escrito, mas a menina Geni não ouve e nada relatam até o final da aula. A menina Geni é elogiada pelo diretor e fica toda feliz.

Observa-se   que a menina Geni não sentia falta de nada e nem cobiçava algo do outro. Apenas um detalhe a incomodava: a diferença de cor.

No conto, Tempos Escolares, Geni mostra essa incompreensão ao expor a pressão exercida sobre a criança negra, cuja conduta e comportamento deveriam ser irrepreensíveis. A criança negra não podia errar e nem se mostrar relaxado:

— Amanhã, seu cabelo já está pronto. Hoje você dorme com lenço na cabeça que não desmancha. Não esqueça de colocar o lenço novo no bornal. Pelo amor de Deus, não vai esquecer o nariz escorrendo. Lava o olho, antes de sair.

— Se a gente for de qualquer jeito, a professora faz o que? — Perguntei.

— Põe de castigo em cima de dois grãos de milho – respondeu-me ela.

— Mas a Janete do Seu Cardoso vai de ramela no olho e até moco no nariz e ...

— Mas a Janete é branca – respondeu-me minha mãe, antes que eu completasse a frase. (Guimarães 1988: 49)

(...)

Nariz limpo.

Eu era negra ... a Janete branca ... (...) (Guimarães 1988: 53)

O filósofo Philippe Lejeune define autobiografia como uma “narrativa em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade” (Lejeune 2008: 14 apud Faulhaber 2012: 5)

Assim, Geni Guimarães se desnuda para o leitor, mostrando o seu âmago sem reservas.

No conto, Enterro da Barata, Geni expõe a sua vida na área rural e o convívio com os costumes simples, bucólicos, recheados de superstições e floreios folclóricos da região.

Geni se apresenta como uma menina saudável, com sede de conhecimento sobre o mundo e a natureza. Mas, a sua família não conseguia acompanhar ou compreender entender essa necessidade. Um dos questionamentos da menina Geni era sobre a verdadeira cor do céu, pois o azul é apenas o visível “Não entendiam que eu queria saber do céu de dentro. Eu queria a polpa, que a casca era visível.” (Guimarães 1988: 30)

Diante de respostas frustrantes, a menina Geni resolve abolir a conversa com as pessoas e adotar o idioma dos animais. Assim, responde seus parentes com latidos e faz pedidos com miados, costume este que trouxe imensa preocupação a sua mãe. Em consequência, a menina Geni é levada para o “benzimento” cujo diagnóstico proferido pela Dona Chica Espanhola é contumaz:

“Está com acompanhamento, o espírito do Zumbi do lado direito dela. Vou fazer um trabalho especial. Afasto o coisa ruim e peço a guarda da Menina Izildinha”. (Guimarães 1988: 31)

Diante do diagnóstico, a menina Geni fica temerosa de prejudicar os seus amigos animais com o tal “coisa ruim” e assim, cessa a sua fala com os animais. Pois, associa tal comportamento com a “doença” diagnosticada.

Geni demonstra neste conto que sua infância foi de certa forma, solitária, sendo incompreendida pelos seus e encontrando conforto nas suas amizades fantasiosas com os animais. Adota um novo amigo, “um bicho de pé”, com o qual traçava longas conversas.

“Havia um fio interno que levava meu pensamento até sua casinha, na curva do dedo do pé. Daí vinha uma coceira gostosa, trazendo-me respostas, consolos. Nossos pensamentos se cruzavam rindo ou chorando”. (Guimarães 1988: 32)

Também no conto Banho no Santo, a escritora Geni mostra outra tradição folclórica da sua região: quando havia seca os moradores faziam uma procissão para jogar água nos santos que havia no caminho orando e pedindo chuva.

A personalidade da menina Geni se mostrava altruísta, prodigiosa e criativa. A frustração com os pais, comum a toda criança, no caso de Geni se mostrava pela incapacidade de suprir a sua sede de conhecimento.

A autobiografia para Philippe Lejeune (1975) envolve a exposição de três eus – o autor, o narrador, o personagem principal – os quais efetuam um pacto de se combinar em apenas um único eu, o autor. Para Barthes (2004) esse autor da autobiografia possui uma voz, ele é na realidade uma pessoa humana, alguém que escreve sobre si próprio. Em decorrência, a autobiografia possui como objetivo expor a identidade do escritor e sua subjetividade. Esse gênero literário emerge em pleno Romantismo, período este onde a subjetividade foi elevada à regra no discurso literário. (Darde 2012)

A marca da escritora Geni no livro é a subjetividade. O mais importante se encontra nas entrelinhas, o sutil é o mais importante.

Foi no conto Fim dos Meus Natais de Macarronadas que Geni abre o seu coração a sua primeira experiência traumática com o preconceito. Um político havia prometido distribuir presentes às crianças da colônia e assim, Geni leva sua irmã Cema e seu irmão Zezinho para a fila. Depois de muito tempo, surgiu em um caminhão um homem vestido de Papai Noel e uma senhora vestida de verde. A senhora distribuía presentes com sorrisos, afagos e beijos.

Daí a madame enfiou a mãe esguia no saco e, quando foi entregar o presente, parou e olhou na carinha negra e boba da minha irmã. Fitou-a com nojo, medo, repúdio, ódio, sei lá. Deu um passo para trás e quase jogou o pacote na cara da Cema. Virou-se apressadamente, sem ao menos o riso fabricado. Sem ao menos atirar-lhe o beijo hipócrita, frio, triste.

Deu-me o meu e o presente do Zezinho. De quebra vieram os complementos: riso enjoado, beijo grudento.

Senti então uma enorme dor de cabeça, vontade de urinar, ali mesmo sobre a terra ardente e os bicos dos sapatos dela.

No dia seguinte, na hora doo almoço, fraca e vazia, vomitei. Era o mal do riso dela no focinho da leitoa, a boca dela na cabeça da galinha.

Era a urina da Cema no meu guaraná, e a carinha suada na testa da rosca doce, remoendo lembranças.

Era o meu brinquedo num canto, sem sair do plástico.

Ela. Ela toda rebocando o meu tempero e encurtando a minha infância. Era ela matando todos os meus natais de macarronada. (Guimarães 1988: 39)

Sentir o preconceito direcionado à sua amada irmã gerou um trauma tão profundo que a menina Geni, acabou por associar o Natal a este evento nefasto. Essa é, sem sombra de dúvidas, a raiz da motivação da luta de Geni Guimarães contra o preconceito, a falta de piedade e a maldade. A menina Geni se depara com uma nova classe de ser humano: os asquerosos e falsos como a senhora vestida de duende.

O próximo trauma causador de sua revolta contra a dominação branca é exposto no conto Metamorfose, quando na escola surge a oportunidade de recitar o poema criado aos 8 anos, no dia 13 de maio, quando a escola iria comemorar a libertação dos escravos. A menina Geni sentiu a responsabilidade de homenagear a “Santa Isabel”, o medo se apoderou pela necessidade de recitar na frente de todos a sua poesia.

Pensei em não ir às aulas por uns dias, inventar uma dor de barriga ... Mas não podia falhar com a princesa Isabel. Ela merecia. Se não fosse ela ...

Que pecado seria maior: mentir que estava doente ou não homenagear a Santa Princesa Isabel?

Optei por ir e não ficar em pecado.

Antes tremer, chorar, do que ser castigada por Deus. Por Deus ou por Santa Isabel?

Pelos dois, claro. (Guimarães 1988: 64)

A menina Geni, desde cedo, era consciente do quanto foi importante o ato da Princesa Isabel. A menina Geni conhecia a importância da liberdade. Resolve então, acrescentar mais versos a sua poesia:

Criei quatro novos versos:

Os homes era teimosos
E os donos deles era bravo,
Por isso a linda Isabel,
Soltou tudo os escravo.
Reli os versos antigos, e achei que deveria ficar por último, para encerrar a declamação com o Viva a Princesa Isabel.
Ao meu poema dei um título: Santa Isabel. Assim ficou:
 
Santa Isabel
Os homes era teimosos,
E os donos deles era bravo,
Por isso a linda Isabel,
Soltou tudo os escravo.
 
Foi boa que nem um doce
E parecia um mel,
Achoo que é irmã de Deus,
Vida a princesa Isabel. (Guimarães 1988: 65-66)

A professora faz as correções ortográficas e diz à menina Geni para decorar que no dia seguinte iria recitar.

No dia seguinte a professora expôs o motivo do feriado:

“— Hoje, comemoramos a libertação dos escravos. Escravos eram negros que vinham da África. Aqui eram forçados a trabalhar e pelos serviços prestados nada recebiam. Eram amarrados nos troncos e espancados, às vezes até a morte. Quando ...” (Guimarães 1988: 67)

A reação da menina Geni, diante dessa exposição foi questionadora:

Vi que a sua narrativa não batia com a que nos fizera a Vó Rosária. Aqueles eram bons, simples, humanos, religiosos.
Eram bobos, covardes, imbecis, esses me apresentados então. Não reagiam aos castigos, não se defendiam, ao menos.
Quando dei por mim, a classe inteira me olhava com pena ou sarcasmo. Eu era a única dali representando uma raça digna de compaixão, desprezo.
Quis sumir, evaporar, não pude.
Apenas pude levantar a mão suada e trêmula, pedir para ir ao banheiro. Sentada no vaso estiquei o dedo indicador e no ar escrevi: lazarento. Era pouco. Acrescentei: morfético. Acentuei o e do f e voltei para a classe.
No recreio a Sueli veio presentear-me com uma maçã e a Raquel, filha do administrador da fazenda, ofereceu-se para trocar meu lanche de abobrinha abafada pelo dela, de presunto e muçarela.
Não os comi, é claro. A compensação desvalia. Não era como o leite que, derramado, passa-se um pano sobre e pronto.
Era sangue. Quem poderia devolvê-lo ... Vida?
Que se enxugasse o fino rio a correr mansamente. Mas como estanca-lo lá dentro, onde a ferida aberta era um silêncio todo meu, dor sem parceria?
Na hora da festa, estava um trapo.
No entanto não me preocupavam os erros ou acertos, sucessos ou insucessos. Era a vergonha que me abatia. Pensava que era a grande da classe, só por ser a única a fazer versos. Quantas vezes deviam ter rido de mim, depois das minhas tontices, em inventar cantigas de roda ... vinha mesmo era de uma raça medrosa, sem histórias de heroísmo. Morriam feito cães. Justo, era mesmo homenagear Caxias, Tiradentes e todos os Dãos Pedros da história. Lógico. Eles lutavam, defendiam-se e ao seu país. Os idiotas dos negros, nada.
Por isso que o meu pai tinha medo do Seu Godoy, o administrador, e minha mãe nos ensinava a não brigar com o Flávio. Negro era tudo bosta mesmo. Até meu pai, minha mãe...
Por isso é que tinha medo de tudo. O filho puxa o pai, que puxa o avô, que puxou o pai dele, que puxou ... E eu, consequentemente, ali, idiota fazendo parte da linha. (Guimarães 1988: 67-69)

O choque foi tão profundo que a menina Geni se envergonha do seu amado povo, de seus amadíssimos pais. Ela sente o peso da humilhação, da cor e da compaixão hipócrita.

A alegria de ter elaborado um poema, a alegria de se sentir única e esperta entre os demais da classe, tornaram-se nada perante a vergonha que a abatia por ser negra.

Esse trauma gera uma cisão tão profunda que a menina Geni resolve negar a sua cor, chegando a lutar para retirá-la do seu corpo.

Eu juntei o pó restante e com ele esfreguei a barriga da perna. Esfreguei, esfreguei, e vi que, diante de tanta dor, era impossível tirar todo o negro da pele.
Daí então, passei o dedo sobre o sangue vermelho, grosso, quente, e com ele comecei a escrever pornografias no muro do tanque dágua. (...) Dentro de uma semana, na perna só uns riscos denunciavam a violência contra mim, de mim para mim mesma. Só ficaram as chagas da alma esperando. (Guimarães 1988: 71)

Esses foram os eventos formadores de uma consciência militante em prol da valorização do negro. Mas, para a menina Geni ainda estavam obscuras as ferramentas para serem usadas na luta. Até que no conto Alicerce, em uma conversa com o seu amado pai, resolve estudar para se tornar professora e assim fazer a diferença na sociedade branca e patriarcal. Afinal, mulher só poderia ser costureira ou professora.

— Pai, o que uma mulher pode estudar?
— Pode ser costureira, professora ... — Deu um risinho forçado e quis encerrar o assunto. — Deixemos de sonho.
- Vou ser professora – falei num sopro.
Meu pai olhou-me, como se tivesse ouvido blasfêmia.
— Ah! Se desse certo ... Nem que fosse pra mim morrer no cabo da enxada. — Olhou-me com ar de consolo. — Bem que inteligência não te falta.
— É, pai. Eu vou ser professora.
Queria que ele se esquecesse das durezas da vida. (Guimarães 1988: 76).

O final feliz, para a autora, foi quando conseguiu se tornar professora e ter seu emprego na escola. O conto, Força Flutuante, encerra com chave de ouro a saga da menina Geni e nascimento da mulher, a professora Geni.

Com o certificado na bolsa, saí para procurar emprego.
Consegui numa escola substituição para o ano todo: dar aulas numa classe de primeira série que “sobrou” das professoras que, sendo efetivas no cargo, optaram por alunos maiores e em processo de alfabetização mais avançado. (Guimarães 1988: 83)

Apesar de encontrar certa resistência velada por parte dos funcionários e demais professores, Geni inicia a sua jornada como professora. Uma aluna não quer entrar em sua sala, por “medo da professora preta”. A inocência da criança, sua honestidade e sinceridade, comovem Geni. Afinal, é o primeiro dia de aula, longe da família e sua professora é negra. O ambiente diferente, as pessoas desconhecidas, assustaram a criança. Geni vê que a criança está assustada e o seu amor cresce resolvendo tentar convencer a criança a ficar.

A diretora tenta intervir para colocar a menina em outra sala, mas Geni, mostra maturidade profissional e pessoal ao assegurar que se ao final do dia a menina não quisesse permanecer na sua sala, seria liberada da sua sala. Ao final do dia, a menina já estava ambientada com a professora. O problema da criança nunca foi a cor, mas sim, o medo do desconhecido e de pessoas estranhas.

Geni demonstra bom senso, astúcia e principalmente compaixão pelo desamparo sentido pela criança. Em nenhum momento deixou extravasar a revolta pelo preconceito. A carga que carregava em sua alma era direcionada especificamente para pessoas falsas e maldosas...tal como a senhora vestida de duende.

— Amanhã você deixa eu sentar perto da minha prima Gisele? De lá mesmo eu cuido da bolsa da senhora. Amanhã eu vou trazer de lanche pão com manteiga de avião, a senhora gosta de lanche com manteiga de avião na lata?
— Adoro.
— Vou dar um pedaço grandão para a senhora, tá?
— Obrigada.
Combinamos.
— Até amanhã — eu.
— Até amanhã — ela. (Guimarães 1988: 86-87)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Acredito que o ato de escrever é o veículo de exteriorização da situação de um povo dentro da sociedade e pode, com isso, motivar mudanças.” (Guimarães 2010)

 

O livro, Leite do Peito, apresenta uma Geni Guimarães que teve uma infância sadia, cresceu em uma família onde brotava o amor, a fraternidade e o respeito entre todos os integrantes. O ambiente é rural, saudável, puro e cheio de natureza. A criança Geni Guimarães não tinha problema com a cor mesmo ciente de que havia certa diferença. A queda do paraíso ocorre quando a menina Geni tem contato com a maldade, a hipocrisia, o preconceito e a verdade mentirosa contada por uma história mal documentada.

Tudo que a menina Geni tinha acesso era a um relato verossímil de sua Vó Rosária, a qual vivenciou a realidade da escravidão, possuidora de orgulho por um povo varonil, forte, puro, religioso e altruísta. Esse povo é retratado pela própria personalidade dos pais de Geni Guimarães, pessoas boas e íntegras. Mesmo cientes da diferença da cor, incutida pela ideologia dominante branca, não perderam o brilho de sua essência.

O fato é que a visão do negro para Geni Guimarães é totalmente avessa à realidade apregoada pela sociedade branca. Essa ideologia branca destrói a verdadeira história do negro, distorcendo a realidade histórico-cultural do Brasil.

Há necessidade emergencial de que a verdade sobre a escravidão, segundo a ótica do negro, não como vítima apenas, mas também como valoroso e orgulhoso de sua raça seja divulgada. A história, contada pelos brancos, retratam uma verdade parcial, a qual se tornou perniciosa e alimentadora de um ciclo vicioso voltado para a subordinação do negro.

Esse é o ativismo de Geni Guimarães, expor a sua vivência, diante da opressão, demonstrando o porquê da dor. O povo negro não é vítima...não é inferior...é protagonista...é bom...é gente.

Para a sociedade esse livro é muito importante, pois também é ignorante da verdade histórica sobre o negro, a história não contada pelo negro. Quem sabe a escritora Geni Guimarães não se anima e produz um livro sobre as histórias de Vó Rosária, reproduzindo a verdade vivenciada pelo negro. Não a verdade da senzala, mas sim, do orgulho de ser negro.

REFERÊNCIAS

DARDE, Augusto. Autobiografia: explorando o gênero e a relação do autor com o texto em que escreve e se inscreve. II Jornada de Estilo Literário. UFRGS. 2012. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/ppgletras/IIjornadaestlit/artigos/ estrangeira/DARDEAugusto.pdf >. Acesso em: 03 jan. 2019.

DUARTE, Eduardo de Assis (Org.). Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica. Vol. 2, Consolidação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

FAULHABER, Gabriel Moreira. A autobiografia e o romance autobiográfico. Anais do VI Simpósio Internacional Literatura, Crítica, Cultura. Disciplina, Cânone: Continuidades & Rupturas. 28 e 31/05/2012. Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora. Disponível em: <http://www.ufjf.br/ darandina/files/2012/09/A-autobiografia-e-romance-autobiogr%C3%A1fico. pdf>. Acesso em: 03 jan. 2019.

GONÇALVES, Juliana. Geni Guimarães: a cor da ternura da literatura negra. Brasil de Fato. Especial Nós, Mulheres. 29/07/2016. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2016/07/29/geni-guimaraes-a-cor-da-ternura-da-literatura-negra/>. Acesso em: 3 jan. 2019.

GUIMARAES, Antonio Sérgio Alfredo. Preconceito de cor e racismo no Brasil. Rev. Antropol., São Paulo,  v. 47, n. 1, p. 9-43, 2004.   Disponível em: <http:// www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-77012004000100001&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 3 jan. 2019. 

GUIMARÃES, Geni. Geni Guimarães, muito prazer em te conhecer. 07/09/2010. Banho de Assento. Disponível em: <https://banhodeassento. wordpress.com/2010/09/07/geni-guimaraes-muito-prazer-em-te-conhecer/>. Acesso em: 3 jan. 2019.

GUIMARÃES, Geni. Leite do Peito. 3. ed. São Paulo: Fundação Nestlé de Cultura, 1988.

LITERAFRO. Geni Guimarães. 17/10/2018. Disponível em: <http://www.letras. ufmg.br/literafro/autoras/267-geni-guimaraes>. Acesso em: 3 jan. 2019.

 

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A VIDA DE MILITÂNCIA LITERÁRIA

DA ESCRITORA AFRODESCENDENTE CIDINHA DA SILVA

RESUMO

O presente artigo visa descrever de forma breve a militância na produção literária da escritora afrodescendente Cidinha da Silva. Em pouco mais de uma década de uma escrita prolífica e surpreendente, Cidinha se apresenta com um discurso nada apaziguador, ao contrário, envolvem denúncia e acusação contra uma sociedade preconceituosa, racista e genocida da raça negra. Palavras pesadas são escritas, por meio de relatos, escrevivências e até analogias com as telenovelas. A maior denúncia da escritora é o caráter velado da discriminação racial, gênero, opção sexual, religiosa e status quo. Apesar da exposição superficial da produção literária de Cidinha da Silva, o presente artigo demonstra o valor da escritora, enquanto cidadã e militante da causa das minorias, para a história e transformação da sociedade brasileira.

Palavras-chave: Discurso literário; Produção; Ativismo.

INTRODUÇÃO

“O racismo faz com que a humanidade do negro não seja considerada como valor universal”

Cidinha da Silva

Graças ao preconceito, o discurso literário da escritora negra é escasso. Quando a produção literária possui essência de militância, expondo a verdade do racismo velado brasileiro, as barreiras para a publicação se tornam épicas. Não há interesse da classe dominante em levantes buscando a justiça equitativa e a igualdade de direitos para as minorias, sejam estas de caráter racial, gênero e/ou classe.

A luta de militantes, ao longo da história da humanidade, é responsável pela evolução dos direitos humanos. Cada soldado, nessa guerra, utiliza as armas que possui. Para Cidinha da Silva, a sua produção textual é a melhor arma nessa guerra contra o racismo.

A produção militante na literatura de Cidinha de Silva é mais que direta. Muitos foram os desafios a serem enfrentados para a publicação de seus textos. A própria escritora revela, em entrevista ao Correio Braziliense, o caráter discriminatório do mercado editorial

Cidinha conta que, em reação à discriminação do mercado, muitos autores negros optam por desprezar o ISBN, espécie de carteira de identidade do livro, e preferem publicar com os próprios recursos. Para a autora, há um bloqueio imposto pelo mercado e uma sensação de não pertencimento dos escritores negros aos “clubinhos literários” que abrem portas para boas editoras e políticas de distribuição que incluem a venda de livros para o Estado e a participação em feiras e festas literárias. (MACIEL, 2014)

A escassez de recursos financeiros é um fator agravante no mercado literário do afrodescendente. Faz com que a voz das escritoras afrodescendentes se cale, preferindo guardar suas ideias ao invés de se humilhar batendo de porta em porta, em puro ato de mendicância, solicitando patrocínio para bancar a publicação.

Mas, Cidinha da Silva venceu essa barreira e aos poucos se torna reconhecida no mercado editorial, na academia e na sociedade. Sua produção literária envolve contos, romance, críticas e até histórias infanto-juvenil. O terreno profícuo de sua imaginação é motivado por sua paixão pela África, por seu colorido folclore e cultura, os quais foram repassados por seus antepassados.

Nesse sentido o presente artigo expõe como Cidinha da Silva, sem meias palavras, inseriu-se na militância em prol do negro na esfera literária. Para tal, é efetuada uma breve análise descritiva de suas publicações, as quais são recentes, mas promissoras no embate idealista do negro contra a dominância repressora branca.

BREVE HISTÓRIA DA ESCRITORA CIDINHA DA SILVA

A escritora Cidinha da Silva é mineira, nascida no ano de 1967, na cidade de Belo Horizonte e seu nome de registro foi Maria Aparecida da Silva. (AFREAKA, 2019; LITERAFRO, 2019)

Sua aptidão para a escrita nasce pelo amor à literatura. Ao ser entrevistada pela Revista Gambiarra expõe a influência de Drummond em sua infância: “A paixão pelas crônicas surgiu ainda na infância, mais especificamente pela leitura do Drummond cronista que conheci antes do Drummond poeta”. (MARQUES, 2016)

Nessa mesma entrevista, afirma ainda, que o seu cotidiano foi e é inspiração para a criação de seu discurso literário.

A escritora se conserva em sua cidade natal até o advento de sua graduação, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), na área de História resolvendo então, alçar novos voos e vai para São Paulo.

Aos 21 anos tem o seu primeiro contato com o ativismo através do Geledés –  Instituto da Mulher Negra, no decorrer do Tribunal Winnie Mandela. E pelo visto foi amor à primeira vista pela causa contra o racismo. Aos 24 anos, em 1988, decide atuar na organização. Onze anos depois, implanta o Programa Geração XXI cujo fundamento era fomentar ações afirmativas voltadas para a educação de jovens negros. O objetivo era impulsionar na sociedade o enfrentamento das desigualdades raciais. Nos anos 2000 a 2002 é eleita presidente do Geledés. (MELLO, 2018)

O ativismo já existente em seu sangue aflora e se inicia então, a saga literária em busca da promoção e divulgação da valorização das minorias, entre elas e em especial, a racial.

Em suas próprias palavras, Cidinha da Silva, conta como foi a sua chegada e adaptação ao Geledés:

Eu era uma menina cheia de sonhos e ambições, principalmente a ambição de me preparar para conquistar o mundo. Escolhi Sueli Carneiro como a pessoa que poderia me preparar e ela, generosa como é, me deu corda, me deu crédito, me deu lastro, apostou em mim, me deixou crescer, me apoiou, me projetou e, sempre que minha arrogância permitiu, me corrigiu. Talvez tenha faltado um pouco de colo, por durezas dos dois lados, de minha parte, eu não sei pedir. (MELLO, 2018)

A escritora sempre teve alguém com os mesmos ideais a amparando e direcionando quanto ao caminho a ser travado na luta pela igualdade racial.

Esse engajamento com a causa negra só se aprofunda. De fato, Cidinha da Silva, envolve-se com a causa de minorias, entre elas, o negro, a mulher e o movimento LGBT. Na verdade, a própria Cidinha se assume como lésbica:

Quem somos nós? Somos lésbicas e o povo LGBT todo. Somos toda a população negra, principalmente os mais desesperançados, enganados por achar que o candidato que os quer mortos vai redimi-los. Somos o povo de asè[1] e desafortunadamente, muitos de nós temos declarado voto em alguém que reiteradamente manifesta nojo por nós. (SILVA, 2018)

Cidinha da Silva incorpora sua experiência vivencial e espiritual em seu discurso literário. O seu cotidiano, cenário base de sua produção textual, envolve religião afro, o negro, a mulher negra e a questão de gênero.

Em 2005 funda o Instituto Kuanza visando o desenvolvimento de ações afirmativas nas áreas de educação, pesquisa, articulação comunitária e juventude. Em meio a estas, adiciona ainda, a discussão de temas polêmicos como a igualdade racial e a questão de gênero. O fruto dessa discussão fornece material para a elaboração de políticas públicas para essas minorias. (LITERAFRO, 2019)

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[1] O àse, em yoruba, ou axé, em português, é a energia vital que todo homem traz à vida para realizar. A cultura yorubá diz que “o homem vem a Ilu Aiye, o Planeta Terra, para realizar, para fazer algo, para deixar sua marca e sua lembrança. É assim que ele será recordado por sua descendência, através de suas realizações”. Axé é o poder que existe nas forças da natureza e em cada um de nós para fazer a vida existir e as coisas acontecerem. (SOARES, 2012)

Em 2006 publica o seu primeiro livro, Cada tridente em seu lugar. Mas, essa não é a sua primeira ação enquanto escritora. Sua motivação é a necessidade de contar suas próprias histórias, colorindo-as fortemente com revolta e indignação contra o racismo, o qual invariavelmente se encontra velado, amparado por falsas cordialidades e afetuosidades no dia a dia. (AFREAKA, 2019)

Toda a sua produção literária é carregada de um cenário voltado para a sua luta cotidiana, sua militância e seu desejo por igualdade para as minorias.

Seu primeiro livro de contos emerge em 2008, denominado “Você me deixe, viu? Eu vou bater meu tambor!”. Em 2011 inicia o ciclo de crônicas com o livro “Oh margem! reinventa os rios!”. Em 2013, o livro “Racismo no Brasil e afetos correlatos”.  Em 2014, o livro “Baú de miudezas, sol e chuva”. Em 2016, o livro “Sobre-viventes” e “Parem de nos matar!”. (LITERAFRO, 2019 e AFREAKA, 2019)

Na área infanto-juvenil escreveu em 2009 o livro “Os nove pentes d´África” e em 2011, os livros “Mar de Manu” e “Kuami”. (LITERAFRO, 2019 e AFREAKA, 2019)

Esse tipo de literatura foi motivado pela sua sobrinha como esclarece a própria Cidinha da Silva:

Comecei a escrever literatura para crianças porque quando lancei meu primeiro livro, “Cada tridente em seu lugar” – a primeira edição que era um livro de bolso -, uma sobrinha de seis anos, em processo de alfabetização, folheava o livro e lia uma letra, uma sílaba, uma palavra. Aquilo me emocionava, mas também desconsertava por se tratar de um livro para adultos, com letras e espaçamento pequenos. Eu explicava isso para minha garotinha, dizia que não era um formato adequado à leitura dela, como se pedisse desculpas. Ela, meio impaciente, me disse: “tá bom, tia, e quando é que você vai fazer livros pra crianças”? Essa pergunta foi a impulsora da minha escrita. (MARQUES, 2016)

Também produziu poesia, publicando em 2016, o seu primeiro livro voltado para a poesia romântica, denominado “Canções de amor e dengo”. (LITERAFRO, 2019 e AFREAKA, 2019)

Para entender como Cidinha da Silva conseguiu unir a militância em causas pelas minorias, enfocando polêmicas e delicadas questões nas áreas racial e de gênero, a seguir é demonstrado como a escritora utilizou sua produção para divulgar a causa.

A PRODUÇÃO LITERÁRIA DE CARÁTER MILITANTE DE CIDINHA DA SILVA

A escritora Cidinha da Silva é mulher, negra e lésbica. Desde o início de sua vida convive com o preconceito, oscilando entre o racial e o de gênero. Pouca coisa é exposta de sua vida particular em relatos biográficos, mas muito pode ser deduzido a partir de sua produção literária.

A tríade religiosidade, gênero/sexualidade e raça é bem explorada no livro “Cada tridente em seu lugar”. A escritora se transporta para a mulher negra, exposta no livro que no passar do tempo é observada e estigmatizada por sua raça, orientação sexual e gênero. O tridente fornece a dimensão do cotidiano e sua influência na formação de valores, os quais aprimoram e criam possibilidades de transformações pessoais e do outro. As três perspectivas, intencionalmente transmitidas pela autora, envolve:

a primeira é destinada a “um pedido de licença”, é o terreno em que ela finca suas raízes, sua relação com o transcendente; a segunda diz respeito às subjetividades, à relação de gênero, à sexualidade; e a terceira e última ocupa-se das relações raciais. (BORGES, 2019)

São 30 crônicas abrangendo temas polêmicos, envolvendo o universo de minorias estigmatizadas e machucadas. São exposições nuas e claras de uma realidade esquecida e varrida para debaixo do tapete da sociedade. Um Brasil onde o preconceito racial é velado, escondido e maquiado:

O interdito não se nomeia, ele está falando de preconceito racial, de racismo arraigado nas relações com os empregados, com os afilhados, com as mocinhas desemparadas às quais os fazendeiros acudiam para criar. Aquelas entregues pela família à madrinha na certeza de que pelos menos não passariam fome, mas só elas sabem todos os outros abusos a que foram submetidas. (SILVA, 2006, p. 116)

Nas entrelinhas do excerto acima, pode-se inferir as abomináveis situações que a autora ou seus conhecidos, passaram em suas vidas, principalmente no decorrer da infância e juventude. Períodos estes, onde é essencial a existência de um atendimento e o acolhimento positivos oriundos dos familiares e demais adultos.

Essa é a militância de Cidinha da Silva, a que expõe a realidade com requinte de denúncia. Sem panos quentes, a escritora deixa a mercê da imaginação do leitor, o quanto é profunda a estigmatização da mulher negra, o abuso sexual e psicológico a que se encontrava submetida diariamente.

 O livro “Você me deixe, viu? Eu vou bater meu tambor!”, segundo o viés da própria escritora é um livro “que aborda o amor e a solidão, vistos e sentidos por personagens femininas, principalmente. São olhares críticos, ácidos, vez ou outra líricos, outras tantas humorados e com mais uma dose de acidez”. (BLOG DA CIDINHA, 2008)

No prefácio, Maria Nazareth Fonseca explica que o livro de contos nada mais é que um apanhado de pessoas e vivências comuns, embalados por necessidades afetivas e de sexo, com o objetivo de aliviar um corpo torturado pelo desejo. “São por isso histórias de humores e impulsos para desbancar a solidão ou o vazio de uma convivência que sabe a cebola e cerveja ou que incomoda como o contato de sola de pés tipo lixa.” (SILVA, 2008)

A militância, a priori, encontra-se voltada para a valorização do universo feminino e de suas carências.

O livro “Oh, margem! Reinventa os rios!”, coletânea de 31 crônicas, Cidinha da Silva aborda memórias familiares e suas experiências como escritora no mundo editorial. A militância é caracterizada pelo discurso acusatório à uma sociedade repressora e preconceituosa. Para tal, utiliza-se de situações vividas, nas esferas pessoal e profissional, expondo como a desigualdade racial.

Minha editora pauta uma crônica-síntese sobre o Natal o Ano Novo e o Carnaval, mas só as latinhas povoam minha cabeça sem ideias. Gente procurando latinhas em todos os cantos e praças, cestos de lixo, caçambas e bares, de tocaia nas mãos de quem bebe refrigerante e cerveja. Latinhas por todos os poros ,samba triste no meu cocuruto. (SILVA, 2011, p.58)

A escritora mantinha seus olhos abertos à realidade vivida pelas minorias, como no excerto acima, o pobre.

Cidinha não fechou os olhos para o seu povo ou para a realidade cotidiana do negro. Mantinha em mente, viva a imagem talvez, da sua avó, a auxiliadora a “Doutora Mundinha”:

Minha avó era chamada de doutora pelos vizinhos. Doutora Mundinha para cima, Doutora Mundinha para baixo. Era solicitação que não acabava mais. [...] minha avó era requisitada para escrever as listas e atendia com gosto: quatro latas de oliu e seis pacotes de banha de porco, para misturar e render o mês todo. três pacotes de cinco quilos de arrois, dez quilos de fejão. Macarrão, assuca, café, farinha de trigo, de tapioca, farinha de povilo, farinha de mio (...) (SILVA, 2011, p.71)

Observa-se a intencionalidade da escritora no linguajar matuto, um verdadeiro dialeto emitido pela população interiorana. Esse detalhe frisado por Cidinha fala, nas entrelinhas, que a bondade, o zelo e a empatia pelo próximo não precisam de academia, mas sim, de caráter.

Inevitavelmente esse discurso de Cidinha provoca no leitor simpatia e empatia pelo mais simples. Os vizinhos da Dona Mundinha não possuem raça ou gênero, são apenas pessoas que precisam de auxílio...e lá vai a Dona Mundinha ajudar a escrever, aconselhando no orçamento doméstico. Com certeza, era a doutora, a sábia, a íntegra e a pessoa confiável da região.

Uma das formas de militância mais eficaz é o provocar efeito empático no leitor, por meio de narrativas demonstrando a humanidade e as emoções dos personagens. Um personagem sem expressão sentimental é um robô, não uma pessoa.

Na apresentação do livro, o escritor Paulo Lins destaca: “A margem reinventa o rio. Cidinha reinventa a vida. A vida é feita de palavras.” (SILVA, 2011)

No livro “Racismo no Brasil e afetos correlatos”, escrito em 2013, Cidinha da Silva é mais incisiva na valorização da virtude para a existência humana, utilizando-se para tal, fatos verídicos. A escritora ao expor esses fatos, os reproduz colorindo-os com certo ritmo como destaca Marcos Fabrício Lopes da Silva:

Ao se deparar com a condição humana de sujeito-dilema, a escritora enaltece a virtude presente neste sentido existencial. Negá-lo seria enclausurar a subjetividade própria e alheia, salienta Cidinha da Silva, por meio de uma literatura percussiva, cuja textura-atabaque faz entoar palavra-ações, que ao mesmo tempo, embalam e abalam os sentidos do público-leitor. Assim, o livro de Cidinha da Silva também se revela como poética da repercussão. Nela, um ritmo dançante se faz presente. Trata-se aqui de uma musicalidade capaz de exprimir o fino da alteridade. Essa importante percepção do outro como constituinte do eu se revela em timbres graves e suaves, aos quais Cidinha da Silva empresta voz afinada. Na roda viva das palavras, a nossa contadora de histórias melhora o silêncio com cantos em prosa para ouvidos de fino trato. (2019, p. 1)

Onde fica então, a militância de Cidinha da Silva? Ele é descrito e analisado de forma objetiva:

O preconceito e a discriminação racial são parte de um todo chamado racismo, um sistema ideológico espraiado e arraigado em instituições e corações, que esvazia da humanidade seus alvos, os serviliza e constrói privilégios para aqueles que exercem o poder. O preconceito racial, então, diferente de outros tipos de preconceito, motivados hipoteticamente pelo desconhecimento, está a serviço da manutenção de um sistema de poder, de exploração que, no Brasil, tem cristalizado o lugar de mando dos brancos em detrimento dos negros. A discriminação racial, por sua vez, é o braço ativo do racismo, é o que define a eficácia de seu modus operandi.

Essa declaração da escritora se dá exatamente na análise da novela “Lado a Lado”, onde é exposto o racismo no período pós escravagista brasileiro. A crítica da escritora se dá ao afeto do escravizador sobre o escravo, o qual permanece na atualidade: “ERA assim lá, naqueles tempos, e permanece assim cá, nos tempos de hoje. A discriminação racial é relativizada pelo afeto do branco pelo negro, é o carinho do senhor pelo escravo”. (BLOG DA CIDINHA, 2013)

O discurso é denúncia pura ao preconceito velado na sociedade brasileira. As relações raciais brasileiras, para a escritora, continuam sendo permeadas pela dominação e repressão, onde o branco é ingênuo, para não dizer tolo, quanto a existência do racismo:

A discriminação racial é relativizada pelo afeto do branco pelo negro, é o carinho do senhor pelo escravo, como disse tia Jurema (Zezé Barbosa). Ou você vê alguma diferença entre a postura de Constância e das patroas (sabidamente brancas) que tratam as empregadas domésticas (negras majoritariamente, não porque eu queira, mas porque assim atestam as estatísticas) como seres a quem fazem o favor de pagar salário irrisório, negam direitos trabalhistas e como compensação, doam roupas velhas e retalhos de carne para levar à casa nos finais de semana? Afora as humilhações, os palavrões, toda sorte de maus tratos e a possível iniciação sexual dos filhos ou assédio dos decrépitos maridos! (...) Laura ouve as justificativas e explicações da mãe e surpreendentemente, tomada por amor filial, dá crédito a elas e tenta amainar o coração da amiga em relação à genitora. Isabel não aceita sequer ouvir, não tem paciência (como eu), mas Laura prossegue, é a representação da mulher branca não-racista que não compreende a ignomínia do racismo e por isso rejeita o fato de que uma igual, a mãe, a quem ela percebe como um ser humano ruim, mas humano, possa ser tão racista. (...) E, se Laura continuar assim, com a visão ingenuamente obliterada pelo afeto, não caminhará a humanidade, pois haverá, sempre, o carinho do escravizador pelo escravizado. (BLOG DA CIDINHA, 2013)

Hoje, sem dúvidas, elevado é o número de pessoas que negam o racismo, achando-o totalmente retrógrado, antiético e desumano. Ao observarmos a história da humanidade, o preconceito é com certeza, o responsável pelos assassinatos em massa. Os genocídios provocados por Hitler e Stalin são recentes, tem-se ainda, os oriundos do processo colonizador, como a extinção das civilizações Maias, Incas e Astecas pelos espanhóis.  E essa constatação foi a responsável pela elaboração da Carta dos Direitos Humanos, pós Segunda Guerra Mundial.

Mas, infelizmente, resiste um pensamento pernicioso, denunciado por Cidinha da Silva, velado atrás do “afeto” do opressor sobre o oprimido. Esse livro, talvez, seja o mais contundente e importante na questão da militância de Cidinha da Silva. Provavelmente, por sua linguagem análoga à realidade e por sua objetividade na exposição do que é preconceito, pois muitos, ignoram a sua existência.

O livro “Baú de miudezas, sol e chuva”, Cidinha da Silva expõe em crônicas as pequenas situações cotidianas contemporâneas e suas influências na formação do homem contemporâneo. A formação do homem atual frente a modernidade, aos comportamentos e cultos mediados pela rede social, como o facebook.

Gente graúda, peixe cascudo, quando apaixonado, morde a isca da exposição facebookiana e quer tornar pública sua paixão. Acho que é porque muitos de nós não tivemos adolescência, principalmente a de hoje, que se estende impunemente aos 30, 35, 40, à vida inteira. Pode ser também que, mesmo mais maduros, estejamos submersos à falta de ação política da vida pública supermoderna, e a exposição da vida íntima seja a única coisa restante a nos conectar ao mundo. (...) Esse amor também quer gritar sua existência e, se o Facebook é o amplificador do momento, a ele! (...). Seja lá como for, são deprimentes as relações de amor, ódio e estupidez com diário virtual das redes sociais. (SILVA, 2014, p. 28-29).

O discurso da escritora aborda a própria existência, expondo publicamente a sua opção sexual “Quando ela diz venha, é sopro de vida, fogaréu de alegria, imperativo perfeito para meu coração que quer tanto segui-la”. (SILVA, 2014, p. 30).

Essa é uma das características mais peculiares à Cidinha da Silva, a honestidade e sinceridade para com o seu leitor. A escritora simplesmente não esconde quem é ou a que veio, expondo abertamente questões polêmicas que poderiam gerar discriminação, como o caso de sua opção sexual. Ser aberta ao leitor é premissa de Cidinha da Silva, afinal, tudo que foge a isso, torna-se a hipocrisia velada que envolve todo o tipo de preconceito.

Os livros “Sobre-viventes” e “Parem de nos matar!” foram escritos em 2016. Inicialmente se observa a complementariedade de ambos. No primeiro há a afirmação de existem sobreviventes, enquanto que no segundo, ordena em tom de súplica: “Parem de nos matar!”.

Em Sobre-viventes foram selecionadas 41 crônicas cujo objetivo é demonstrar como vivem os invisíveis da sociedade racista brasileira. Os sobreviventes se tornaram invisíveis e assim, conseguem sobreviver literalmente à margem da sociedade. Não tomam parte do ser social conjunto, encontram-se separados e assim, são criados. Como exemplo, a autora cita a história dos famosos antepassados africanos:

Eu jogo no time de Anastácia, aquela cuja existência a historiografia questiona. Que é vivíssima na memória do povo. Que atravessou gerações desde o século XVIII pela tradição oral. Que é filha de Obá em nosso imaginário infinito e atemporal de luta para sermos livres e plenas.
Eu jogo no time de Luiz Gama para quem todo escravizado que mata o escravizador, o faz em legítima defesa. Se for preciso, a gente descansa a pena de Nkossi e faz o xirê do fogo. E se cair, a gente cai de pé, atirando, como Assata Shakur. (SILVA, 2016, p. 77).

Para tornar um ser invisível, faz-se necessário negar-lhe um lugar na história humana. Esse é o modus operandus da sociedade dominante: apagar o passado das personas non gratas.

Apesar de todas as dificuldades o negro, como demonstra a escritora, manteve-se vivo na tradição oral. Eles existem, há uma história a ser contada. E ela, Cidinha da Silva, é usada como instrumento para contar ao mundo.

No livro “Parem de nos matar!” ocorre a denúncia clara do genocídio da raça negra, segundo Cidinha da Silva:

(...) é leitura densa que exige estômago e coragem. É um livro que exige mais do que o desgastado uso do termo ‘denúncia’ para caracterizá-lo. (...) é testemunha de acusação do genocídio contemporâneo da população negra. É memória viva em transformação que se vale da crônica como suporte. (PEREIRA, 2017)

O racismo, para Cidinha da Silva, é fonte das chacinas praticadas pela força policial brasileira. O genocídio negro continua. Essa é a denúncia da escritora: “No mundo real, entretanto, eram sempre negros os alvos dos linchamentos. Qualquer motivo, qualquer suspeita, qualquer vacilo diante das regras do establishment justificava a eliminação física do suspeito” (SILVA, 2016, p. 22)

O livro é aberto por um bloco de textos que tratam do extermínio do povo negro no sentido alargado, não só da morte física. Passam da vida que é retirada à vida que sobrevive, mas não conta, não importa, como a vida das 276 meninas sequestradas pelo Boko Haram para fins sexuais, no interior da Nigéria e os 2.000 mortos em uma única cidade, também assassinados por esse grupo islâmico-fundamentalista durante três ou quatro dias, enquanto os olhos do mundo estavam totalmente voltados para os atentados ao jornal Charlie Hebdo, na França. Assassinatos de jovens negros gays, segundo testemunhas, executados por grupos neo-nazistas, mas tratados pela polícia como suicídio. Dimensões raciais da perseguição aos Rolezinhos nos shoppings de São Paulo e de todo o Brasil e discussão da política de confinamento destinada a certos grupos sociais x direito à cidade. Duas chacinas imortalizadas no início de 2015, a dos doze meninos e homens no Cabula, Salvador, legitimada pelo governador de plantão como “gol de placa da polícia” e os meninos do Morro da Lagartixa, no Rio de Janeiro, fuzilados por 111 tiros. Em setembro de 2017 a polícia paulistana conseguiu superar a marca carioca e matou 10 homens com 140 tiros no bairro Morumbi. O bloco finaliza com uma crônica sobre os que juntam vinténs na microeconomia do carnaval soteropolitano. (SILVA, 2017)

As crônicas são recheadas de violência direcionadas ao negro, seja mulher, homem ou criança. Basta ser negro para se tornar alvo.

Não é à toa que esse livro complementa “Sobre-vivente”, pois como genocídio encontra-se não apenas a retirada do sopro de vida do indivíduo negro, mas também a sua história, o seu tesouro cultural visando apagar da história brasileira a sua existência. Isso ocorre em todas as esferas, segundo a escritora, seja na área artística, acadêmica, científica ou social.

Essa é a breve, sucinta e superficial análise da militância de Cidinha da Silva em sua produção literária. Compreendendo ser necessário um espaço muito maior para cada publicação, pois o material é muito rico. Podendo ser retirado muito mais do seu discurso literário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em tom de fechamento importa salientar que Cidinha da Silva sofreu e continua sofrendo constantes ataques contra a sua condição de gênero, sua opção sexual, sua raça e sua religião. Na sociedade patriarcal ser mulher já é ruim, negra, adepta da religião afro e lésbica então, é um evento apocalíptico!

Mas, a escritora sobreviveu e se tornou mais forte. Essa é a base da frase do escritor norte-americano Tim Hansel “A dor é inevitável, o sofrimento é opcional... E com certeza o que não me mata, me fortalece!”

A injustiça e a opressão, essa muitas vezes, hipócrita e amaciada com falsa empatia, criaram em Cidinha da Silva uma necessidade de tornar pública as suas experiências em sociedade. Alertar o leitor, a sociedade como um todo, é a missão de Cidinha da Silva. Seu discurso em tom de denúncia e acusação envolvem a sua escrevivência, a mídia e a ficção que imita a realidade.

Doa a quem doer a voz de Cidinha da Silva não se calará e em prol das minorias, brandirá a sua bandeira literária em busca de igualdade e equidade para todos.

REFERÊNCIAS

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BLOG DA CIDINHA. Racismo no Brasil e afetos correlatos. 07/02/2013. Disponível em: < http://cidinhadasilva.blogspot.com/2013/02/racismo-no-brasil-e-aspectos-correlatos.html>. Acesso em: 23 mai. 2019.

BLOG DA CIDINHA. Você me deixe, viu? Eu vou bater meu tambor! É meu novo livro, a sair pela Mazza edições, em fevereiro de 2008. 05/01/2008. Disponível em: <http://cidinhadasilva.blogspot.com/2008/01/voc-me-deixe-viu-eu-vou-bater-meu.html>. Acesso em: 23 mai. 2019.

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MARQUES, Ana Paula. Cidinha da Silva: a escritora que tem o cotidiano como matéria-prima. Revista Gambiarra, Jornalismo, Cultura e Ativismo. 06/05/2016. Disponível em: <http://revistagambiarra.com.br/site/cidinha-da-silva-a-escritora-que-tem-o-cotidiano-como-materia-prima/>. Acesso em: 23 mai. 2019.

MELLO, Kátia. Entrevista de Cidinha da Silva no Portal Geledés. 30/07/2018. Disponível em: <https://medium.com/@cidinhadasilva/entrevista-de-cidinha-da-silva-no-portal-geled%C3%A9s-33181cceb611>. Acesso em: 23 mai. 2019.

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SILVA, Cidinha da. Parem de nos matar! Rio de Janeiro: Ijumaa, 2016.

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